por Bruno Cavalcanti
Virgínia Rodrigues
Show: Mama Kalunga
Data: 13 de janeiro de 2019
Local: Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros – São Paulo (SP)
Cotação: * * * * (ótimo)
Virgínia Rodrigues é uma das maiores cantoras do mundo. O mundo sabe disso – a Europa principalmente. Infelizmente o Brasil ainda não deu o devido valor a esta cantora que carrega na voz uma ancestralidade que beira o celestial e a perfeição, capaz de, numa tarde de domingo, encher um dos maiores teatros da rede Sesc e driblar erros técnicos que, infelizmente, chegaram a empanar o brilho de uma apresentação inspirada.
Baseado em seu último disco de estúdio, Mama Kalunga (2015), o show da turnê homônima chegou ao Sesc Pinheiros para única apresentação, após ter passado por algumas capitais do Brasil e viajar por continentes como Europa e África.
Com o cristal da voz intacto, Virgínia entrou em cena ovacionada por uma plateia formada majoritariamente por um público jovem que conheceu a cantora já consolidada no mercado após ter sido descoberta por Caetano Veloso enquanto fazia parte do elenco de Bai Bai Pelô, encenado em 1994 pelo Bando de Teatro Olodum em Salvador, e, paralelamente cantava em corais de igrejas na Bahia.
E é essa voz, depurada pelos cantos sacro e teatral, que dá a Virgínia a segurança de abrir o show completamente à capela. Sem cerimonias, a cantora entra em cena para solar com perfeição Ao Senhor do Fogo Azul (Gilson Nascimento), canção que também abre o disco que dá base ao show, para depois entoar, em feitio de oração a música título, Mama Kalunga (Tiganá Santana).
Bastante segura, a cantora conseguiu driblar erros de som que tentaram – sem sucesso – empanar o brilho de canções como Babalaô Amor de Escravo e Mukongo, dois belíssimos títulos de Tiganá Santana gravados no último disco da artista, que teve dez de suas treze faixas corajosamente reproduzidas ao vivo.
Com uma banda de alto quilate, Rodrigues também resistiu para deixar que os problemas na luz atrapalhassem a apresentação. Fossem nos tons opacos escolhidos para os duetos travados pela cantora com parte de sua banda, fosse no completo breu ao qual foi relegada antes de iniciar Tristeza e Solidão, bela pérola pescada do baú dos Afro Sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes.
Contudo, apesar dos erros que, esteticamente, empanaram o brilho da apresentação, Rodrigues conseguiu driblar o jogo contra e sair vitoriosa de um set em que duelou de igual para igual com os violões de Bernardo Bosisio e Leonardo Mendes, com o violoncelo do virtuose Iura Ranevsky e as percussões do já mítico Marco Lobo e do sueco Sebastian Notini.
Com Bosisio, Virgínia entoou Teus Olhos em Mim (Roberto Mendes/ Nizaldo Costa) em tom sagrado – ecoando os versos de uma balada desconstruída – para desaguar na Melodia Sentimental de Villa-Lobos com letra de Ferreira Gullar em dueto com o violoncelo de Ranesvsky e mostrar toda sua voz tamanha e celestial entoando as Bachianas nº 5, também de Villa-Boso, em vocalizes sublimes.
A cantora ainda entoou outro Afro Samba da safra Baden/ Vinícius ao som do violão de Mendes fazendo ressoar a doída Consolação, para, aí sim, cair nas águas de Dorival Caymmi ao som de Noite de Temporal, em duelo primoroso com o berimbau e a mini-percussão de um genial Marco Lobo num dos melhores momentos do show, que ainda abriu espaço para que Virgínia mostrasse outras faces.
Numa faceta que relembra o histórico escravagista do chamado “Brasil de dentro”, Virgínia ressignificou a interpretação de Yá Yá Massembá, o culto de matriz africana de Roberto Mendes e Capinam popularizado por Maria Bethânia após gravação em 2003 em seu clássico álbum Brasileirinho.
A cantora também se mostra uma crooner de primeira ao encarar o samba canção Sou Eu (Moacir Santos/ Nei Lopes) e pescar do baú uma pérola transformando-a numa joia de primeiro escalão: Nos Horizontes do Mundo, delicioso samba de Paulinho da Viola que deu título a CD e a um dos melhores shows de Leila Pinheiro, lançados em 2005.
Na voz de Virgínia, o samba se transforma em um tema quase sacro, sem jamais deixar de lado o fino trato da assinatura do príncipe Paulinho. Contudo, Rosa também sabe fazer sambar, e é o que mostra já no BIS, ao fim do show, ao som de Vá Cuidar de sua Vida, o samba do paulista Geraldo Filme que se transmuta em um samba de roda do recôncavo baiano e é servido como tema de protesto contra o racismo, a homofobia e o machismo, mostrando que Virgínia também sabe movimentar a massa.
Enfim, apesar de alguns erros crassos, Mama Kalunga, o show, é excelente espetáculo que, mais uma vez, reafirma a fenomenal interprete que é Virgínia Rodrigues, uma das grandes cantoras do mundo que, a cada disco, apenas se comprova ainda mais uma interprete de infinitas possibilidades. Que o Brasil enxergue isso com mais clareza. Para seu próprio bem.
Confira abaixo o roteiro seguido no show de 14 de janeiro:
1- Ao Senhor do fogo Azul (Gilson Nascimento)
2- Mama Kalunga (Tiganá Santana)
3- Babalô Amor de Escravo (Tiganá Santana/ Abigail Moura)
4- Mukongo (Tiganá Santana)
5- Teus Olhos em Mim (Roberto Mendes/ Nizaldo Costa)
6- Melodia Sentimental (Heitor Villa-Lobos/ Ferreira Gullar)/ Bachianas (Heitor Villa-Lobos)
7- Consolação (Baden Powell/ Vinícius de Moraes)
8- Noite de Temporal (Dorival Caymmi)
9- Nos Horizontes do Mundo (Paulinho da Viola)
10- Tristeza e Solidão (Baden Powell/ Vinícius de Moraes)
11- Yá Yá Massembá (Roberto Mendes/ Capinam)
12- Sou Eu (Moacir Santos/ Nei Lopes)
13- Luandê (ederaldo Gentil)
14- Dembwa (10 de Agosto) (Tiganá Santana)
BIS:
1- Vá Cuidar de Sua Vida (Geraldo Filme)