por Luís Pimentel
Foi assim: morremos um.
Depois morremos mais um e mais outros. Morremos mais alguns e logo depois éramos muitos.
E a voz do descaso disse que se tratava apenas de uma gripezinha.
A câmera era lenta e apenas nos assuntava.
Os muitos de nós viraram tantos. Tantos que perdíamos a conta de tanto que sofríamos. O sofrimento crescia, enquanto encolhíamos espremidos pelo medo.
E a voz da arrogância berrava que medo era coisa de covardes, enquanto rasgávamos o ventre e as veias em busca da tão sonhada valentia.
A câmera era tensa, mas ainda nos unia.
Somamos e ultrapassamos algarismos, das centenas aos milhares, chorando aos pares, perdendo todas as apostas. Impossível aquela velha esperança.
Mas a esperança não morre; os esperançosos, sim.
Impossível aquele sonho de abraçar o filho, de se aquecer no neto, de expandir o afeto.
Ah, o afeto que mais cedo ou mais tarde se encerra.
O coração, a emoção, o tesão e a alegria esquecidos.
E voz da rudeza nos atiçava.
A luz nos cegava como no ensaio de Saramago. Apegados às lembranças compartilhadas de cenas de antes do fim do mundo.
Quanta luta, quanto luto, quanta live!
Acordando aos prantos por Aldir. Engolindo o café amargo por Jesus Chediak. Dormindo embriagado por Marcus Vinicius Quiroga e acordando inúmeras vezes na madrugada para varrer mortos da cabeceira.
Poucos ainda tinham no que se apegar. Flávio Migliaccio não aguentou esperar; e foi.
Tudo recomeçando na manhã da dolorosa fita em série.
E a câmera ali, cruel e certeira. E a voz do monstro na orelha, “e daí, não sou coveiro!”, o sorriso vermelho do monstro a cuspir sangue no espelho.
A irmã acalanta: “Deus está no comando”, enquanto o arroto do demônio comanda o novo espanto.
O amigo diz: “Estamos vivos”.
Estamos? Ainda estamos?!
A câmara solta o gás.
A câmera apaga a luz.
O cão ladra
ladainhas
para a cruz.