por Bruno Cavalcanti
Gilberto Gil
Show: OK OK OK
Data: 22 de junho
Local: Tom Brasil – São Paulo (SP)
Após atravessar sérios problemas de saúde no ano de 2016, com uma série de internações que estampavam manchetes de sites e blogs na internet, Gilberto Gil (em foto tirada pela coluna) entrou em 2017 caindo na estrada ao lado de Nando Reis e Gal Costa em turnê de caráter experimental que resultou em CD e DVD que, se em nada adicionaram às respectivas discografias, também não fizeram mal.
Dois anos após enfrentar e vencer a guerra a favor de sua saúde, Gil voltou a olhar para si e para a vida em tom reflexivo que já havia pautado criações anteriores acerca dos mistérios que rondam tanto a vida quanto a morte.
Abraçado pelo seio familiar, deu vida a OK OK OK (2018), disco em que não se limita a pensar apenas o micro, mas também o macro social a sua volta através dos sons e barulhinhos bons pensados por Bem Gil, filho do compositor e um dos músicos e produtores mais requisitados da nova geração por ter aprendido a traduzir, com perfeição, os anseios musicais de um público que consome a música jovem urdida com clara antecipação por produtores como Kassin e Guilherme Kastrupi.
No show, que estreou em Belo Horizonte em 24 de novembro de 2018, Gil pôs em cena roteiro que propunha comunhão fraterna e ampliou as sensações reflexivas e sociais do disco. Foi este mesmo show que o cantor trouxe e volta a São Paulo sete meses após sua primeira passagem pela cidade, em 29 de novembro de 2018.
Com única apresentação, realizada no último sábado, 22, Gil subiu ao palco do Tom Brasil na posição de uma espécie de líder espiritual em comunhão reforçada pela plateia, que ouviu atentamente as palavras das 25 canções que compõem o roteiro que resulta em de duas horas de um show sem concessões.
Ao som da canção-título, Gil abriu o show OK OK OK na companhia seu solitário violão, urdido pelos beats eletrônicos da programação pilotada pelo tecladista Danilo Andrade. E foi com a mesma atenção repleta de sorrisos marotos, que o público que lotou a casa de espetáculos acompanhou as batidas de Quatro Pedacinhos, delicioso tema composto por Gil para a cardiologista Roberta Saretta, responsável por parte de seu tratamento em 2016.
Com plena confiança no seu taco autoral, Gil enfileirou 13 das 15 canções que compõem o roteiro do disco OK OK OK, e abriu ainda espaço para saudar o antigo parceiro João Donato, com quem reativou parceria após mais de 30 anos com a gravação de Uma Coisa Bonitinha (2018), canção gestada em meados da década de 1980 e, por intermédio do pesquisador musical Marcelo Fróes, retrabalhada para o repertório do disco.
Da parceria com o pianista e compositor acreano, Gil ainda pescou Lugar Comum, sucesso de 1974, que ganha oportuna revitalização com os arranjos do show musicalmente dirigido pela dupla Gil, pai e filho. Bem Gil, inclusive, foi o responsável por arregimentar a banda de oito músicos que acompanha a turnê, compreendendo perfeitamente os sons que compõem temas de acento mais fraterno, como Sereno (2018) e Sol de Maria (2018), expandidos no roteiro pela inclusão de Pai e Mãe (1975), belíssimo tema ancestral em que Gil sublinha o carinho à figura paterna e às relações de franca amizade.
Formada por Bruno Di Lullo (baixo), Danilo Andrade (teclados), Domenico Lancellotti (bateria e percussão), José Gil (bateria e percussão), Thiago Queiroz (sopros), Diogo Gomes (sopros), Nara Gil (vocal) e pelo próprio Bem (guitarra), a banda traduz bem a imensidão dos sons formatados pelo compositor. Mas é inegável que a real comunhão se dá quando Gil fica só em cena na solitária companhia da eloquente voz de seu violão.
Neste set, o cantor linka Prece (composta para sua esposa Flora Gil em 2018) a Se eu Quiser Falar com Deus (1980), canção acompanhada pelo coro espontâneo do público em feitio de oração, sublinhando a delicadeza e a força filosófica e reflexiva dos versos criados pelo baiano, que medita a longevida ao som de Jacintho (2018), bem-humorado tema sobre seu amigo homônimo e centenário, em canção que reflete singela referência ao samba No Tabuleiro da Baiana (1936), de Ary Barroso.
Em prece a deusa música, a primeira metade do show OK OK OK surtiu efeito solene pelo fato de o compositor, sentado, não se desvencilhar de seu violão, interpretando as canções em tom de justa serenidade.
Contudo, a partir da segunda metade, ao assumir sua guitarra, já em pé, o compositor caiu no suingue e na festa santa prometida pelo cenário colorido de Luiz Zerbini. Ao som de Na Real (2018), Gil encheu o palco de energia que desaguou em Seu Olhar, sucesso radiofônico de 1985 inteligentemente pescada para formar cama a Kalil (2018), canção feita em homenagem a Roberto Kalil, médico responsável pelo tratamento do compositor em 2016.
Com efeito menos sedutor no disco, Kalil cresceu em cena por encontrar na plateia paulistana resquícios de bom humor pela homenagem ao profissional. O mesmo público também vibrou com a interpretação do cantor para Pro Dia Nascer Feliz, canção de Roberto Frejat e Cazuza lançada com imenso sucesso simultaneamente pelo Barão Vermelho e por Ney Matogrosso em 1985.
A interpretação de Gil resultou mais opaca do que o entusiasmo da plateia sugeriu. Muito pelo ineditismo de ouvir o tema na voz do compositor, muito também pelo caráter pouco concessivo do roteiro seguido fielmente pelas viagens da turnê desde sua estreia em novembro passado.
Buscando uma comunhão conceitual, o espetáculo não segue os trilhos óbvios do showbizz, suprimindo os grandes hits pedidos a exaustão pelo público, mesmo no BIS. Ficaram de fora temas como Drão (1982), Expresso 2222 (1972), Refazenda (1975), entre outros títulos que, aparentemente, moveram parte da plateia ao Tom Brasil na noite de sábado.
Entretanto, ainda que sem concessões, Gil conseguiu “animar a festa” ao pescar Nossa Gente (Avisa Lá) (1992), sucesso do grupo Olodum, já gravado pelo compositor ao lado do parceiro Caetano Veloso em 1993, e tomar singelo partido ao sublinhar os versos “aqui é o fim do mundo”, ao som da tropicalista Marginália II (1968), seguida da anticlimática Opachorô (1997) que também atingiu certa catarse com os versos “Oxalá, Deus queira, Oxalá tomara, haja uma maneira deste meu Brasil melhorar”, acompanhado por parte do público como protesto silencioso.
Antes do BIS, Gil ainda sacou do rock Ouço (2018), para, só então, retornar ao palco e saudar o lirismo de Afogamento (2018), sem jamais abandonar o tom de reflexão acerca da vida e da morte, como mostra o tema originalmente gravado em dueto com Roberta Sá.
Se o público vibrou ao som de Extra (1983), também se deixou contagiar com o infalível Maracatu Atômico (1974), que deu a OK OK OK o clima festivo esperado, para só então, em tom de prece, ser encerrado à capela ao som dos versos de Minha Ideologia, Minha Religião (1985).
Com uma serenidade beneficiada pelo trabalho do tempo rei, Gilberto Gil saiu o palco do Tom Brasil na noite de sábado, 22, deixando a certeza de que, ainda que sem concessões, estava ali um espetáculo de som, reflexão e filosofia sob a batuta de um dos maiores letristas da canção popular, capaz de, através da iminência da morte, analisar a política, a fé, a religião e os laços familiares neste que, sem dúvidas, é um de seus melhores espetáculos.
COTAÇÃO: * * * * (ótimo)
Confira abaixo o roteiro seguido na noite de sábado, 22 de junho.
1- OK OK OK (Gilberto Gil, 2018)
2- Quatro Pedacinhos (Gilberto Gil, 2018)
3- Sereno (Gilberto Gil e Bem Gil, 2018)
4- Uma Coisa Bonitinha (Gilberto Gil e João Donato, 2018)
5- Lugar Comum (Gilberto Gil e João Donato, 1974)
6- Lia e Deia (Gilberto Gil, 2018)
7- Pai e Mãe (Gilberto Gil, 1975)
8- Yamandu (Gilberto Gil, 2018)
9- Prece (Gilberto Gil, 2018)
10- Se eu Quiser Falar com Deus (Gilberto Gil, 1980)
11- Jacintho (Gilberto Gil, 2018)
12- Sol de Maria (Gilberto Gil, 2018)
13- Na Real (Gilberto Gil, 2018)
14- Seu Olhar (Gilberto Gil, 1985)
15 Kalil (Gilberto Gil, 2018)
16- Tocarte (Gilberto Gil e Nando Reis, 2017)
17- Pro dia Nascer Feliz (Roberto Frejat e Cazuza, 1983)
18- Nossa Gente (Avisa Lá) (Roque Carvalho, 1992)
19- Marginália II (Gilberto Gil e Torquato Neto, 1968)
20- Opachorô (Gilberto Gil, 1997)
21- Ouço (Gilberto Gil, 2018)
BIS
1- Afogamento (Gilberto Gil e Jorge Bastos Moreno, 2018)
2- Extra (Gilberto Gil, 1983)
3- Maracatu Atômico (Jorge Mautner e Nelson Jacobina, 1974)
4- Minha Ideologia, Minha Religião (Gilberto Gil, 1985)