por Bruno Cavalcanti
É sintomático que cinco meses após anunciar sua aposentadoria dos palcos, Abigail Izquierdo Ferreira, a Bibi Ferreira, tenha saído de cena aos 96 anos de idade em decorrência de uma parada cardíaca. Com 77 anos de sua vida dedicados a construir uma das carreiras mais longevas e admiradas do cenário cultural brasileiro, Bibi coleciona alcunhas como cantora, atriz, diretora, produtora, interprete e tem seu nome dedicado a um prêmio que laureia o teatro musical, gênero no qual foi pioneira no Brasil.
Bibi peitou a indústria para montar o que quis quando quis. Foi assim que trouxe a Brasil ainda em pleno desenvolvimento cultural, espetáculos musicais importados dos Estados Unidos, como em Minha Querida Dama (My Fair Lady, em 1963) – espetáculo no qual estreou uma certa bailarina de nome Marília Pêra –, Alô Dolly! (Hello, Dolly!, em 1966), O Homem de La Mancha (Man of La Mancha, em 1972),todos títulos clássicos do repertório da Broadway, que se tornaram verdadeiros sucessos em terras tupiniquins.
Sua admiração pelo teatro musical fez muito pela cultura brasileira, que começou, então, a engatinhar na produção de grandes espetáculos profissionais, respingando na forma que o Teatro Oficina encenaria, por exemplo, musicais como O Rei da Vela e Roda Viva, algum tempo depois.
Filha de dois artistas – a bailarina argentina Aída Izquierdo e o ator brasileiro Procópio Ferreira –, Bibi entrou em cena pela primeira vez aos 20 dias de idade, no colo da atriz Abigail Maia durante a peça Manhãs de Sol, de Oduvaldo Vianna, em junho de 1922. Aos 14 anos também deixou sua marca no cinema em Cidade Mulher, filme produzido por Carmen Santos com canções de Noel Rosa.
Mas foi aos 19 anos, em 941, que a primeira cantriz brasileira pôs um ponto de partida em sua extensa carreira. Após sua estreia em La Locandiera, Bibi entrou para o primeiro time de atrizes brasileiras, atuando em grau de igualdade com as estrelas da época, e abrigado em sua companhia artistas do quilate de Cacilda Becker, Maria Della Costa e a diretora Henriette Morineau.
Bibi também se tornou uma espécie de primeira dama do teatro musical brasileiro, quando encenou, em 1970, o brasileiríssimo “Brasileiro, Profissão Esperança” (1970), de Paulo Pontes e no icônico Gota D’Água, musical de Paulo Pontes e Chico Buarque de Hollanda baseado no mito de Medeia, de Sófocles. O espetáculo se tornou um dos grandes musicais da história do país, além de coroar Bibi como a maior atriz do Brasil.
Como cantora, a artista também foi pioneira. Sem jamais se despir de sua persona teatral, a cantriz fazia shows nos quais apresentava temas dos musicais que havia montado e dos espetáculos que participara, além de interpretar sucessos de nomes como Antônio Carlos Jobim, Noel Rosa, Pixinguinha, Haroldo Barbosa, Dolores Duran, Assis Valente, Dorival Caymmi, Edu Lobo e árias de óperas como O Barbeiro de Sevilha e O Brinde da Traviata, entre outras.
A atriz também construiu sólida carreira de diretora, tendo assinado peças no Brasil, em Portugal e na Argentina. Entre os espetáculos que a consagraram estão Deus lhe Pague (1976), de Joracy Camargo, Um Rubi no Umbigo (1981), de Ferreira Gullar, O Melhor do Pecados (1981), de Sérgio Viotti, no qual promoveu o retorno aos palcos da atriz Dulcina de Moraes, e Roque Santeiro (1993), peça de Dias Gomes que a atriz encerou em forma de musical – que depois ganhou nova versão em 2017.
Bibi deixou de atuar em 2007, quando encenou ao lado de Juca de Oliveira, Adriane Galisteu e Neuza Maria Faro a comédia política Às Favas com os Escrúpulos, de Juca de Oliveira. O espetáculo realizou temporadas em São Paulo e no Rio de Janeiro e saiu em turnê pelo Brasil. Bibi foi a única componente do elenco a permanecer durante toda a carreira do espetáculo.
Teve tempo, ainda, de ver sua vida transformada naquilo que sempre amou: um musical. Sob a direção de Tadeu Aguiar e com texto assinado por Arthur Xexéo e Luanna Guimarães, com músicas originais de Thereza Tinoco, Bibi, Uma Vida em Musical não apenas colocou em cena a vida desta grande atriz (interpretada com perfeição por Amanda Acosta), como também lhe rendeu um tributo em vida. E, como se não bastasse, um prêmio dedicado ao teatro musical ainda leva seu nome.
Na última década, a atriz se dedicou a seu lado cantora, passeando pelo repertório de nomes como Edith Piaf, Amália Rodrigues, Carlos Gardel, Dorival Caymmi e Frank Sinatra. Seu último show, Por Toda a Minha Vida – La Dernière Tournée já dava o tom de despedida dessa atriz, cantora, diretora e produtora brasileira que ajudou a solidificar o cenário cultural do Brasil passeando pelo teatro, pelos musicais e pela música com a mesma seriedade e destreza com a qual levou a vida ao longo de 96 anos, quase todos dedicados ao palco e ao público.
Bibi Ferreira sai de cena sagrada uma das maiores atrizes não apenas do Brasil, como de toda a América Latina com reconhecimento internacional (uma de suas maiores fãs é ninguém menos que Liza Minelli). Sua partida encerra um capítulo muito importante da história do teatro brasileiro: era a última representante do teatro clássico formado pelas primeiras companhias que precederam nomes como Henriette Morineau , Dulcina de Moraes, Procópio Ferreira e Sérgio Cardoso. Bibi sai de cena para entrar na eternidade.
* A cantora e atriz ainda deixou inéditos um CD e dois DVD’s, que devem ser editados pela gravadora Biscoito Fino em breve.