por Bruno Cavalcanti
País localizado no leste da África, a Uganda é ainda uma das nações que tem em suas leis a condenação da homossexualidade, a reconhecendo como um crime ou, como viria a definir políticos e do país, “um mau hábito digno de castigo”. Instaurada em 1950, a ilegalidade dos homossexuais no país se tornou uma pauta muito presente em discussões sobre os direitos humanos em todo o continente.
Como resultado de uma política autoritária e de uma educação precária, além de grande fundamentalismo religioso, a publicação The Rolling Stone, jornal independente e conservador que se manteve aberto de agosto a novembro de 2010, publicou fotos de pessoas suspeitas de serem homossexuais. Algumas foram perseguidas, outras presas e, outras ainda, mortas.
É neste cenário que se passa O Jornal The Rolling Stone, peça do dramaturgo britânico Chris Urch sobre as consequências da publicação na sociedade ugandense, em cartaz no Teatro do Sesc Santo Amaro, zona sul da capital. Na trama, uma família prepara-se para ver seu irmão temporão se tornar pastor da comunidade, com a ajuda de uma influente dama da sociedade.
Entretanto, apesar de seguir os preceitos sociais, um dos irmãos se vê em meio a um romance com um médico estrangeiro, com quem pretende fugir até ser descoberto, ter sua foto estampada na capa do jornal e colocar em risco a segurança de sua família.
Sob a direção de Kiko Mascarenhas e Lázaro Ramos, O Jornal The Rolling Stone discute uma série de questões sociais contemporâneas dentro de um tema carro-chefe.
Embora a homossexualidade na Uganda pareça guiar a ação do espetáculo, ainda há espaço nesta encenação para discutir temas como fundamentalismo político-religioso, a força de instituições religiosas em sociedades defasadas, o lugar social da mulher, o racismo, a disputa pelo poder e o afeto familiar.
Conduzidas através do texto (muito) bem traduzido por Diego Teza, a encenação coleciona acertos em uma montagem que já pode ser destacada como uma das melhores em cartaz na capital paulistana – se não for a melhor. A começar pelo elenco.
No papel de Dembe, rapaz que se apaixona pelo médico estrangeiro, Danilo Ferreira constrói uma personagem cativante. Ao contracenar com Marcus Guian, no papel do médico Sam, a dupla conquista imediata identificação com a plateia, com um magnetismo que ajuda a transformar o espetáculo em uma catarse.
Mérito também do excelente trabalho de corpo dos atores. De todos. Destaque do elenco, Heloísa Jorge entrega uma Mama que dialoga com matriarcas clássicas da dramaturgia mundial, aludindo a personagens shakespearianas. Assim como Marcella Gobatti, excelente atriz que, sem falas, angaria para si um dos grandes momentos de um espetáculo repleto de altos – e nenhum baixo.
Embora Indira Nascimo, a princípio, parece render menos, a atriz consegue capturar para si momentos de grande refinamento cênico da metade para o final, durante a transformação de sua Wummie de uma jovem sonhadora a uma mulher frustrada com as obrigações retrógradas de sua comunidade. A atriz cativa.
Talvez por este grande páreo, André Luiz Miranda pareça menos equipado para a batalha cênica que trava, principalmente com Heloísa Jorge. Ótimo ator, Miranda rende pouco ao tentar emular uma personagem que necessita envelhecer para assumir as responsabilidades de sua família e de sua comunidade como pastor.
Mas, mesmo que dê a impressão de render menos, o ator consegue grandes momentos ao lado de Indira Nascimento e Danilo Ferreira, formando a família que precisa lidar com a morte de seu pai, ainda provedor do grupo.
Resvalando no clássico, o texto de Urch usa de elementos que mimetizam assinaturas como as de Edward Albee e Tennessee Williams para soar contemporâneo. Ao longo de uma hora e meia, o espetáculo transcorre com naturalidade, sem jamais soa cansativo ou protocolar. Mérito também da refinada direção de Ramos e Mascarenhas.
Atores experientes no ato de fazer teatro e com escolas e aprendizados distintos, a dupla constrói rara unidade neste espetáculo, que tem na iluminação criada por Paulo César Medeiros uma dos mais refinados trabalhos em cenas paulistanas. É também através da luz de Medeiros que boa parte da tensão da peça se apoia (junto à inspirada trilha sonora criada por Wladimir Pinheiro).
Com um texto de alto quilate e uma encenação cada vez mais rara no teatro moderno do eixo Rio-São Paulo, O Jornal The Rolling Stone tem uma condução cênica que o aproxima cada vez mais do título de Melhor Espetáculo em cartaz na cidade, unindo como poucas vezes se viu, um grande texto, um excelente elenco e uma direção e produção refinados sem jamais soar elitista ou ininteligíveis.
É o teatro contemporâneo que flerta com o clássico sem jamais deixar de ser acessível. Como poucas vezes tem se visto atualmente.
SERVIÇO:
O Jornal The Rolling Stone
Data: 09 de março a 15 de abril (sexta a domingo)
Local: Teatro do Sesc Santo Amaro – São Paulo (SP)
Endereço: Rua Amador Bueno, 505 – Santo Amaro
Horário: 21h (sexta); 20h (sábado); 19h (domingo)
Preço do ingresso: R$ 15,00 (meia) a R$ 30,00 (inteira)