por Léa Penteado
Costurando um delicado bordado em uma colcha de retalhos, uma amiga olha por sob meus ombros admirando o trabalho e comenta “está torto…” Sim esta torto, assim como as costuras, bordados, crochês, tricôs, cerâmicas, pinturas e todos os trabalhos manuais que faço… Ainda vou mais longe, desenho fora do prumo, fica difícil escrever no papel sem pauta, esqueço acentos e vírgulas, os pensamentos também são falhos, as vezes pulam de um lado para o outro, algumas frases ficam sem sentido, repetitivas. As palavras saem às vezes atropeladas e magoam. Quando percebo já se precipitaram pela boca e ganharam tortamente o mundo. Faço gestos tortos, mas não tenho dedo torto. Sempre fiz boas escolhas.
Por mais que eu me esforce, tem sempre algo torto no caminho, uma roupa fora do armário, uma bolsa na cadeira, um livro solto em uma mesa…. Adoro acreditar que tenho tudo muito arrumado, um prazer raro ver as gavetas certinhas, mesmo que por pouco tempo…. Até a bagunça da mesa de trabalho entendo como perfeita. Limpo, guardo papéis, fios, lápis, canetas e, de repente, fogem dos seus lugares, quase derrubam o mouse…
Sou grata à desordem que me permite exercitar uma arrumação externa tentando acertar a interna… Ah! se fosse tudo muito certo eu morreria de tédio… Tive um marido que pendurava as camisas como uma paleta de cores. Quando as portas dos nossos armários ficavam abertas ao mesmo tempo, eu olhava às roupas dele, depois os meus cabides sem qualquer ordem, e tinha sempre a impressão que meus vestidos eram mais felizes, mesmo completamente tortos.
O fio reto e o torto vêm de base. O meu olhar sempre teve um viés curioso, isto me fez repórter e me levou aprender muitas coisas, como a costura que faço no momento. Lembrança remota, ainda pequena brincando ao lado da máquina, ficava encantada com os pés da minha avó que num movimento continuo, ritmado, pedalavam fazendo rodar a engrenagem e a magia acontecia: a agulha entrava e saía do tecido, unindo pedaços que se transformavam em roupas. Vovó fazia o vestido para a mamãe, às roupas dos netos e até as camisas do papai. Talvez tenha sido este o primeiro ofício que conheci. Eu ficava no entorno e às vezes para me distrair vovó jogava no chão uns pedacinhos de tecidos, botões bem grandes para que eu não colocasse na boca, um velho fecho éclair, uma bobina de madeira, resto de retrós. Quando cresci ela me ensinou a usar agulha e linha, dar meus primeiros pontos, comecei a juntar paninhos que se transformavam em roupas para as bonecas, bolsinhas, chapéus e por onde a imaginação levasse e os tecidos ajudassem… E assim, sem me preocupar se a costura estava torta ou reta, nem qualquer exigência de estética, comecei a fazer minhas roupas. Acertei muitas, errei outras tantas…. Tudo feito no olho, uma peça a ser copiada era colocada em cima do tecido bem esticado na mesa de jantar e se transformava em molde. Sem dó nem piedade lá eu ia com a tesoura rasgando o pano, prendendo com alfinetes e dali para a máquina. No dia seguinte o vestido estava pronto para ir à festa do clube.
Fui costurando pela vida não mais unindo paninhos, mas juntando pessoas, negócios, relacionamentos e considero que faço isto muito bem. Por isso quando eu morrer e se no encontro com Deus tiver que dizer o que fiz por aqui, simbolicamente vou me apresentar como ponte, em alguns momentos maçaneta. Abri portas, propiciei encontros, uni pensamentos e pessoas, colaborei para fluir sonhos, somei na construção de projetos, ideias se tornaram realidade…. Tão compenetrada como no tempo em que juntava os pedacinhos de tecido que vovó jogava no chão. Com isso, hoje quando quero refletir, bordo, costuro, reúno os pedaços em forma de colchas. E se alguma emenda ficou torta é por que deixei um pedaço de mim, ficou a marca com amor…. Não foi erro, foi acerto.
Léa Penteado é jornalista e escritora, mora em Vila de Santo André, em Santa Cruz Cabrália, Bahia.