Sinto muito se minhas crônicas andam sombrias, tristonhas, mas até para quem é uma pessoa de bem com a vida como eu, o astral não está bolinho, não. Conviver com todas essas mortes, com tanta tragédia, com tamanha desolação, arrasa, deprime, nocauteia. Volta e meia me pego pensando, tentando me colocar no lugar das pessoas que foram atingidas, que perderam pessoas amadas, que perderam todas as suas referências materiais: será que há alguma espécie de intuição da tragédia que está por vir? Ou naquele dia em que tudo acabou, a criatura levantou-se pela manhã com aquela disposição de vamos viver mais um dia de nossas vidas – a ida para o trabalho, o almoço pra fazer, a roupa pra lavar, a consulta no dentista marcada para o fim da tarde, quando tudo já estava mais ou menos encaminhado. Tudo igual, como todo dia. E as crianças – pelo que li, a maioria das trágicas baixas – que ainda não têm com o que se preocupar? Pobrezinhas, mal tiveram tempo de conhecer as delícias da vida, mas também nem tiveram tempo de driblar os seus inevitáveis percalços.
É tudo muito triste. Tenho sentido isso no dia-a-dia. As pessoas estão com o semblante mais carregado, todas, seja no supermercado, no restaurante ou na caminhada na praia. Ainda falam constantemente sobre o assunto. Todo mundo tenta esquecer, mas é impossível. Ligam pra me chamar para uma festa. Festejar o quê, Senhor? Isso lá é hora de dar festa?
O homem ao meu lado na farmácia, acompanhado pela mulher, pega a cestinha e enche de ataduras, gazes, Hipoglós, fraldas, fraldões, chupetas e mamadeira. Sei que o casal está comprando para doar aos que tudo perderam. Compram muito. No supermercado ao lado, a cena se repete: posso sentir que todas aquelas pessoas ali, assim como eu, estão procurando comprar dentro de suas posses os artigos que jornais, rádios e televisão pedem para os sobreviventes.
Assisto às imagens dramáticas do socorro daquela senhora que teimou em levar o cachorrinho, que acabou tragado pela fúria das águas. Choro de agonia. Choro porque empatizo. Os animais também estão vivendo suas perdas. Felizmente, assim como os humanos que vêm sendo abrigados em suas cidades, eles vêm sendo adotados por essa corrente de gente solidária de todas as idades, raças e cores, todas dispostas a dar um novo lar aos bichinhos que, nunca é demais lembrar, são os melhores amigos que uma pessoa pode querer ter.
Aqui um parêntesis: enquanto rola o rescaldo da tragédia, leio O Homem do Terno de Panamá Branco, da jornalista egípcia, naturalizada americana, Lucette Lagnado, um maravilhoso livro de memórias da vida dela no Cairo e de sua saída de lá, na guerra civil do final dos anos 50. O foco do livro é seu pai, Leon, um personagem pronto, e o Cairo, claro, à época em que era a cidade mais sofisticada do Oriente, uma espécie de Paris à beira do Nilo. Depois de radicar-se com a família em Nova York, ainda menina, Lucette hoje é repórter investigativa doThe Wall Street Journal. Recomendo vivamente a leitura deste livro. Voltando aos animais. Lucette, quando saiu do Cairo, deixou pra trás sua gatinha Pouspous. Quando volta, anos depois, quer saber se o atual dono da casa chegou a conhecê-la. E ele pergunta se ela sabe o que acontece com um gato que perde seu dono: ele não come mais. Morre de inanição. Estou até agora chorando com essa história. Fecho o parêntesis.
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Que beleza é o nosso povo! Que gente solidária! À beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, a metros da minha casa, um grupo de voluntários (que reúne, inclusive, cabeças coroadas da sociedade carioca) varre a tristeza pra longe trabalhando em favor dos necessitados, debaixo de um calorão arrasador, sem qualquer mordomia.
Puro amor ao próximo, beleza de compaixão, irresistível solidariedade, um bem-vindo sinal de que nem tudo está perdido neste país onde tudo é possível – inclusive, para os mais céticos, a real vivência da Fé, da Esperança e da Caridade, as três virtudes teológicas, que muitos conhecem e alguns iluminados praticam.