por Murilo Rocha
Mortos, como sabemos, falam. E falam muito, se quem estiver agachado ao lado deles for Sherlock Holmes, por exemplo. Podem informar sobre o alfaiate que cortava seus ternos, o tipo de fumo do cigarro ou charuto de sua preferência, onde esteve na véspera ou mesmo na semana anterior e, eventualmente, até suas preferências sexuais. Tudo isso, para fornecer pistas que, infalivelmente, levarão ao assassino, se for o caso (sempre é, nos textos de Sir Arthur Conan Doyle).
Mortos falam também, geralmente menos, mas de forma mais crível, nas mesas de médicos legistas, tanto os reais, que frequentam nosso dia a dia, quanto os dos seriados de TV, estes bastante beneficiados pela imaginação dos roteiristas. Dizem qual o calibre do revólver que os alvejou, o número de série da arma, quem a vendeu e quem a comprou, o tipo de faca que os estripou e outros dados, que ajudarão, de algum modo, a solver o eventual homicídio, novamente se for o caso. Quando de acidentes, ou, ainda, de formas naturais, ajudarão, no mínimo, os responsáveis legais a preencherem os documentos necessários para que sejam despachados para outra dimensão.
Em sessões espíritas, mortos não só aparecem como, eventualmente falam, com suas próprias vozes. Em geral, consolando entes queridos ou recompensando-os com uma visão que os impressione positivamente e restaure temporariamente o sólido laço com que se uniram aos vivos presentes às sessões. Mortos, infelizmente, não falam numa série de outras situações, em particular quando se trata de acidentes aéreos, por exemplo. Afinal, morre sempre muita gente nesses acidentes e, ao que se saiba, nenhuma vítima fatal foi ouvida dizendo o que acontecera a bordo, nos momentos que precederam o fim. É até possível que agora, com a onipresença dos celulares, que gravam tudo e fotografam tudo, algum deles, achado entre destroços, diga alguma coisa, mas, seguramente, nada acerca das causas.
Muito menos falam os pilotos que, na imensa maioria das situações, embora registrados pelas famosas “caixas pretas” (em geral cor de laranja), muito pouco dizem a respeito do que ocorreu. Ou, se e quando dizem – sobretudo algo comprometedor para seus patrões ou para o fabricante do avião – pouco ou nada dessas falas é levado ao conhecimento do distinto público. Ficam, claro, confinadas a relatórios pouco lidos e menos ainda divulgados. Portanto eles, os pilotos, são os culpados de quase sempre. Ou alguém teve amplo conhecimento de casos em que a responsabilidade foi das empresas aéreas ou dos fabricantes? Que, como se sabe, sempre acompanham as investigações bem de perto, muitas vezes de pertíssimo. Afinal, um resultado negativo costuma sair muito caro para eles.
Há exceções em que o piloto não fala e se sabe que foi o culpado. É o caso do desastre com o time da Chapecoense, no qual o piloto morreu sem nada dizer, mas todos souberam que era o culpado, pelo fato de, na sua dupla condição de proprietário da companhia, ter decidido poupar um dinheirinho, deixando de abastecer o avião na escala anterior. O aparelho, como todos vimos, espatifou-se com os tanques secos, levando-o com sua ganância e infelicitando dezenas de famílias.
Outro território em que o silêncio dos mortos ocorre com frequência é o lucrativo ramo das biografias, ocupado principalmente por jornalistas/pesquisadores e historiadores. Trata-se de um cipoal no qual o morto, ainda mais se for uma figura, digamos, pouco popular, como Adolf Hitler ou Josef Stalin, é reduzida a pó. Seus defeitos são habitualmente multiplicados ao infinito, verdadeiros ou não. Até porque quem se arriscará a desmentir alguns notórios exageros e mentiras exibindo testemunhos ou documentos comprovadamente sérios? Afinal, pode-se dizer, sem risco de processos, que Hitler era pedófilo, antropófago, vivia drogado e qualquer coisa mais de ruim que trouxesse consigo. Ou que Stalin, como bom comunista, comia criancinhas. Literalmente.
Esse peso que os mortos silenciosos carregam, na verdade deve ser compartilhado por pesquisadores meia-bomba, muito mais interessados em vender escândalos do que em divulgar histórias reais e, com isso, enriquecer nosso conhecimento sobre personalidades. E mortos, como os citados e muitos outros, nunca descansarão (ou arderão sossegados nas chamas do Inferno), porque sempre haverá um descobridor de acontecimentos “inéditos” de suas vidas terrenas para conseguir uns trocados com suas descobertas.
Recentemente, em artigo da ótima Dorrit Harazim no Globo, tivemos um exemplo de ataque a um desses mortos já cheios de defeitos, mas que ainda não encontraram alguém interessado em defendê-los. O nome é Richard Nixon de quem um certo John Farrell diz que, candidato à Presidência dos EUA, sabotou deliberadamente as conversações iniciais de paz entre seu país e o Vietnam. O objetivo: desacreditar o então ocupante da Casa Branca, Lyndon Johnson, e, principalmente, o candidato que este escolhera para disputar o pleito com o próprio Nixon, em 1968.
O autor da biografia (aliás, são mais de 400 sobre Nixon), assegura que Johnson soube de tudo, mas não tinha como provar e, assim, ficou quietinho e acabou permitindo a eleição folgada do grande inimigo político. Ora, com todo o respeito, ressalvado o amplo conhecimento sobre o mau caráter de Nixon, trata-se de uma acusação de traição, sobretudo quando se sabe que só naquele ano morreram no Vietnam mais de 16 mil soldados americanos. É possível acreditar nisso? Que o espertíssimo Johnson perderia uma chance dessas de liquidar eleitoralmente o rival? Que nenhum serviço de informações que lhe passara a história não vazasse o que sabia?
Há muito mais perguntas a fazer quanto à “biografia” do sr. Farrell, mas, no que diz respeito ao presente texto, o fato é que todos os citados no episódio, entre eles o chefe da campanha de Nixon, John Mitchell; seu assessor mais próximo, Bob Haldeman; e o grande conselheiro democrata Clark Clifford, entre muitos outros, já morreram e não tocaram no assunto, exceto, como Clifford, muito tempo depois, cheio de reservas: “Melhor para o país não divulgar essas coisas”. O próprio Johnson teria declarado, indignado: “Foi traição”. O verbo é “teria”; provas, zero. Seja lá como for, o fato concreto é que as negociações de paz com o então Vietnam do Norte só começaram com Nixon sentado na Casa Branca. E foram concluídas em 1975, após sua renúncia via Watergate, pelo vice Gerald Ford, 11.780 mortos depois.
Mais recentemente ainda, aqui em nossas paragens, tivemos o caso de ataques a um morto ilustre que, mesmo sem poder falar, teve, felizmente, quem falasse por ele. É o episódio do terceiro livro de memórias do ex-presidente Fernando Henrique, no qual ele desanca seu antecessor, Itamar Franco, que, aliás, o nomeara ministro da Fazenda, cargo com o qual, via Plano Real, foi catapultado à Presidência. As histórias sobre o temperamento instável e complexo de Itamar são bem conhecidas, mas FHC foi duríssimo com ele, inclusive dizendo que passou parte do tempo na Presidência como “ama seca” para conter os arroubos de seu antecessor que, garante, sequer lera o Plano Real.
Em defesa de Itamar vieram vivos respeitáveis, como o ex-senador Pedro Simon, que negou peremptoriamente qualquer atenção de Fernando Henrique para com ele. “De onde ele tirou essa história de que Itamar colocou obstáculos ao Plano Real e sequer o lera? Onde há uma palavra de Itamar contra o Plano? Fernando Henrique é um brilhante sociólogo e nunca foi economista. Teve o mérito de coordenar os economistas, mas daí a dizer que Itamar nem o leu é desmerecer. Foi Itamar quem determinou que as coisas acontecessem”, desabafou Simon.
Outro vivo, o ex-senador Luiz Fernando Freire, bateu ainda mais pesado: “Dizer que Itamar era temperamental não é ofensa, mas uma de suas características, O que ofende mesmo é o pavoneamento permanente, o processo sistemático de falar mal de seus mais próximos colaboradores, o ridículo e habitual autoelogio, a desmedida vaidade e, pior que tudo, a ingratidão para com quem o inventou como ministro e presidente da República”, indignou-se Freire em declaração ao mesmo Globo.
Mais recentemente, ainda, tivemos o caso do ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, cujo avião espatifou-se em plena campanha presidencial e que está citado numa das delações da Lava Jato e que segue em silêncio. Ao que se saiba, até agora nem a família contratou algum advogado para falar por ele. E não quero voltar muito no tempo para lembrar do célebre Celso Daniel, um cadáver que mesmo sem falar continua assombrando seus antigos companheiros do PT, que fazem o diabo para que não abra a boca.
A história dos povos está cheia dos mortos que falam de diferentes maneiras, dos que dispõem dos vivos para defendê-los – mas, principalmente, para atacá-los – e, em imensa maioria, dos silenciosos, que se refugiam na paz da eternidade. Provavelmente era nestes que o grande Gustave Flaubert pensava quando, com o espírito dos curiosos, escreveu: “Talvez a morte tenha mais segredos para nos revelar que a própria vida”.