por Rafael Fonseca
Era um lugar pobre, de gente simples. Na época, uma roça, com cavalos e galinhas transitando pela rua de terra batida e muita taioba nascendo pelo mato. Hoje quem chega ali e vê uma favela dominada pelo tráfico de drogas, violenta e insegura, não imagina que há pouco mais de 15 anos era, tão somente, um lugar bucólico. Sheila tinha que enfrentar três conduções — às vezes, quatro — para chegar em casa, vinda do trabalho. Um trajeto que tomava horas do seu dia, horas preciosas nas quais deixava seu maior tesouro em estado de abandono: seu filho. O menino era enorme, havia puxado à família do pai. E ela andava pensando em inscrevê-lo no basquete, ou outro esporte que fosse de gente alta. “Falta do que fazer é a oficina do diabo”, lembrava da voz do pai, homem com o qual teve pouca convivência. Filha de uma escapada, fora criada à parte, longe dos irmãos, e perderia a própria mãe muito cedo, vendo-se órfã e precisando ir trabalhar como doméstica desde os 9 anos de idade. Foi dura a vida até ali…
Sheila ia subindo o morro até a meia-água onde morava, mas naquele dia ela trazia uma surpresa. O Natal e o Ano Novo haviam passado, era início de janeiro, e ela não tinha tido condições de oferecer ao menino nada de especial. Doía fundo, ainda, o dia em que ele havia lhe pedido um carrinho de bate-volta, e ela não teve outra opção senão colocá-lo diante do verdadeiro dilema: se comprasse o brinquedo, naquele mês passariam a feijão e banana, e só. Ele optou pela comida, mas o que ela nunca soube foi que sua escolha não fora movida pelo apetite ou pelo medo de escolher o errado, pois pelo carrinho ele passaria até mesmo somente à base das bananas. Mas, ciente das terríveis crises respiratórias da mãe, da fraqueza crescente, das apavorantes faltas-de-ar que o faziam chorar escondido, ele a queria forte do lado dele, e um mês à base de pouca comida, aquele guri já sabia, poderia ser fatal.
Mas voltemos à subida do morro, onde vemos a elegante Sheila, que copiava na máquina de costura os vestidos bem cortados das patroas que tentava memorizar a forma e o corte, milímetro a milímetro, enquanto lhes corria o ferro de passar. Naquela tarde, ela estava linda — ainda não disse que era bonita?, pois era, e muito — num costume verde que uma das maledicentes da comunidade dizia ter certeza que ela havia surrupiado de alguma grã-fina. “Vai dizer que ela fez naquela Singer vagabunda de agulha enferrujada? Dúvide-o-dó”. As vizinhas se espremiam de inveja. A mesquinharia daquelas esquinas lhe rendeu o apelido que corria, à boca pequena: Madame Suada.
Sim, porque depois de faxinar dois apartamentos em Copacabana e gramar três horas de engarrafamento na Avenida Brasil, por mais bem cortado que seja o traje, a criatura chega um pouco desancada em casa. E era essa mistura de exaustão com elegância era seu perfil conhecido de todos, das mexeriqueiras de Caxias às patroas da Lagoa. O único que podia ver a verdadeira Sheila era seu filho. Só ele era testemunha — e mais que isso, resultado — da busca daquela brava mulher pela superação. Queria dar ao filho a chance de sair daquilo. Não a incomodava a simplicidade do lugar, disso ela até gostava. Mas eram a falta de recursos, as horas perdidas num ônibus lotado, as limitações do pouco estudo, tudo o que ela jurou evitar para o filho. Com a idade na qual ela precisou começar a trabalhar, ele estava matriculado num dos melhores colégios particulares da Zona Sul da cidade. Isso lhe comia quase que na totalidade o que ela arrecadava como diarista. Mas ele não haveria de passar pelo que ela passou. Ensinou o garoto a prestar atenção a tudo, a aprender com cada experiência, a sorver tudo que fosse conhecimento.
Mas eu me desvio e preciso voltar àquele fim de tarde de verão quase nublado, o horizonte alaranjado pelo sol que se despedia, e Sheila vindo, linda, no seu vestido verde. Traz na bolsa, embrulhada em papel-laminado uma lagosta. Uma só, sobra de um banquete nababesco acontecido num triplex de frente para o mar em Ipanema. O crustáceo ia para o lixo, mas a patroa, magnífica em sua bondade de ocasião, perguntou à ela se ela não gostaria de levar. Ainda desdenhou: — “Você vai saber preparar isso, ô Sheila?”. E ela saberia, já tinha consultado o livro de receitas ali mesmo, ante a possibilidade da iguaria sobrar.
Naquela noite inesquecível, o filho de Sheila iria experimentar pela primeira vez uma “comida de rico” (como ele mesmo brincou, anos depois). Ele já sabia manejar os talheres como pouca gente realmente educada sabe. Ela explicou que garfo e faca, assim comuns, não eram as ferramentas ideais, mas seria assim mesmo. E, deleitada, Sheila assistiu ao filho comer, como um príncipe, sua lagosta com molho de manteiga.
Dez anos depois, quem está subindo aquele mesmo morro, com seus 2 metros de altura e corpo de Apolo, é o filho de Sheila. Dezessete anos, bonito como um guerreiro de filme, fazia ainda mais inveja nas vizinhas fofoqueiras. Aquela fulana, que dizia que Sheila surrupiava vestidos, agora dizia que o jovem era garoto de programa. “Só pode!”, destilava, prenhe de tantas frustrações. Mas o rapaz havia se formado, era desportista de um time importante, e ainda seria da seleção brasileira naquela modalidade. Naquele tempo jogava na Holanda, e vinha trazer um perfume caro como presente para a mãe. Ao ouvir o ferrolho do portão abrindo de um determinado jeito que ela sabia que era ele, exclamou “Meu filho!”. Ele, do outro lado, sorriu feliz. Adorava ouvir aquilo. A melhor música que poderia haver. Nem um, nem outro, sabiam que aquela era a última vez. Que nunca mais o portão abriria daquela forma e nem a frase “Meu filho” seria dita e ouvida com tanto amor. O perfume permaneceria lacrado, pois no dia seguinte Sheila passou muito mal e foi internada. Do coma, nunca saiu.
O filho de Sheila nunca mais fez o mesmo caminho. A casa, ele deixou abandonada, e talvez nem exista mais, tal aquela comunidade mudou — para pior, muito pior. Como perdera o pai com 2 anos, a mãe era toda sua família. Hoje é um homem bem sucedido, fala 4 idiomas, conquista a todos por sua postura séria (herança do que sofreu) e doce (herança de Sheila), e só se ressente de ser, quase sempre em quase todos os lugares onde frequenta hoje, o único negro nesses espaços. “Mesmo levando em conta os que trabalham”, me disse outro dia. Sheila conseguiu o feito, tirou seu tesouro de lá. Hoje ele vive nos ambientes onde ela trabalhava. E lá no morro, infelizmente, ninguém mais ouve falar da Madame Suada…
Rafael Fonseca
é pesquisador musical, cronista da Anna e organiza viagens musicais.