por Bruno Cavalcanti
Cantor, violonista e eventual compositor, João Gilberto Pereira de Oliveira saiu de cena de forma um tanto abrupta – mas não necessariamente surpreendente – na tarde de sábado, 06, em um dos muitos endereços onde morou no Rio de Janeiro ao longo de mais de 60 anos, aos 88 anos de idade. A despeito dos muitos epítetos já dedicados para adjetivar o cantor, um parece unânime em seus obituários: gênio.
De fato, João Gilberto, desde que surgiu solidamente no mercado, em 1958, com o lançamento de Chega de Saudade (a canção de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes que, no ano seguinte, deu nome ao primeiro disco deste artista baiano de Juazeiro), se impôs como um verdadeiro ponto fora da curva na música popular brasileira.
Com o lançamento deste primeiro – e irretocável – álbum, João apresentou ao Brasil um novo estilo de voz, violão e de canção que, com o tempo, se tornaria (mais por influência do jornalista Ronaldo Bôscoli do que necessariamente de João) o que viria a ser a Bossa Nova, movimento musical que, grosso modo, fundiu o ritmo sincopado do samba com o minimalismo do jazz.
Entretanto, no violão de João o reducionismo das definições caia por terra. Apenas em Chega de Saudade, o disco de1959, o cantor irmanou samba, baião, jazz e, diferente do movimento de negação que iria a se tornar a Bossa Nova capitaneada por Bôscoli, prestou homenagens e, muito antes o tropicalismo, fundiu os estilos que pavimentaram a música popular, lembrando nomes então considerados ultrapassados, como Dorival Caymmi (Rosa Morena), Ary Barroso (É Luxo Só) e seu ídolo maior, Orlando Silva (Aos Pés da Cruz).
Também foi o principal intérprete de toda uma era. Compondo muito pouco (mas elevando a status de clássico a simplicidade de seu baião Bim Bom), foi o responsável por expandir e popularizar a obra composta por aquele que seria o maestro soberano da musica popular, Antônio Carlos Jobim, e do poeta de uma geração, Vinicius de Moraes. João se sagrou o melhor intérprete da dupla, assim como deu aval para nomes como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Tito Madi.
A genialidade de João é indiscutível, principalmente ao, em análise fria, se perceber que, diferente da narrativa que se instaurou acerca de certo elitismo bossa novista, sua música chegou para além da elite intelectual do Rio de Janeiro. João era um dos interpretes preferidos de Zé Keti e Cartola, sambistas dos morros cariocas. Cartola, inclusive, nunca escondeu que seu sonho era o de ouvir João interpretando seu clássico As Rosas não Falam.
Não teve essa chance. Não apenas por ter morrido em 1980, antes de João expandir seu repertório para compositores além da Bossa Nova, mas também porque o intérprete achava a canção complicada demais, e nunca a cantou, embora relatos deem conta de que João chegou a tentar ensaiar “Acontece”, música que considerava linda, mas jamais se arriscou a interpretar.
A mesma gravação que explodiu no Rio de Janeiro e em São Paulo, chegando aos ouvidos de uma elite cultural, também explodiu no resto do Brasil, e mesmo na pequena cidade de Santo amaro da Purificação, onde então dois jovens baianos se deixariam levar pelo ritmo e decidiriam, a partir daí, cantar. Alguns anos depois, os dois jovens irmãos se tonariam Maria Bethânia e Caetano Veloso, artistas que, junto a Gal Costa e Gilberto Gil, prestariam constantes homenagens a figura daquele que ainda hoje é considerado o Papa da Bossa Nova.
A importância de João não se limita apenas na pavimentação de um novo caminho para a música popular, mas também para a abertura cultural de outros países, principalmente os Estados Unidos, para a música produzida em terras patropis. Foi ao lado do saxofonista Stan Getz que João fez de Garota de Ipanema – na voz de sua então esposa Astrud Gilbert – um hino mundial.
A partir da exportação da Bossa Nova iniciada com João e solidificada com a obra de Antônio Carlos Jobim, o Brasil deixou de ser exportador apenas de matéria prima e passou a exportar uma cultura que reinventou o jazz norte americano, dando régua e compasso para a reinvenção da carreira de nomes como Ella Fitzgerald, Frank Sinatra e Tony Bennett, além das homenagens prestadas por nomes contemporâneos, sendo o mais importante deles, o da canadense Diana Krall.
João reinventou a imagem brasileira então focada nos quindins de iaiá popularizados por Carmen Miranda, abrindo espaço para outros artistas e colocando o país numa espécie de lanterna cultural, exportando, depois, movimentos que seriam inspirados no gênero, como o supracitado tropicalismo.
Ao sair de cena, João Gilberto deixa um legado não apenas musical, mas também cultural. Com um disco, João reinventou a cultura popular ao apontar novos caminhos para a música brasileira e, sobretudo, uma nova visão do Brasil para o mundo. É reducionista – e ignorante – imaginar que sua importância se defina apenas a um gênero musical, ou possa ser reduzido às curiosidades ou polêmicas de sua vida pessoal – sublinhadas por sua família nos últimos anos.
João Gilberto sai de cena para entrar na eternidade como o músico mais importante da música popular no Brasil, responsável não apenas por reinventá-la, mas por fazer dela relevante a nível mundial. E isso não há polêmica ou chatice que diminua.