por Reinaldo Paes Barreto
Esta lá no Google: janeiro tem esse nome em homenagem a Jano, deus do começo, embora simbolize também o passado. Ou seja, a figura de Jano, com a sua face dupla, gêmea, é associada a passado e futuro. O que o torna, por isso mesmo, o deus das escolhas.

as duas faces de Jano
É então tudo no calendário começa a fazer sentido: o mês se instala após o Réveillon, que significa em francês acordar (ou reanimar, em sentido figurado) e continua homenageando esse mito romano (Jano) que representa a metáfora da porta fechada/porta aberta, isto é, a liberdade de cada um de se prender ao que passou — ou atravessar o batente e construir uma nova perspectiva para o ano que se inicia. Mas nem sempre é fácil, requer a coragem de ir em frente, recorrendo ao passado apenas como filtro.
Conto uma história que ilustra essa resistência a atravessar fronteiras.
Em 1967 fiz um curso de pintura no Stedelijk Museum de Amsterdam, como parte de um projeto inovador do Grupo COBRA, um movimento de vanguarda europeu que escolheu esse “acronímico” (perdoem!), formado pelas iniciais de Copenhague, Bruxelas e Amsterdam, para expressar a oposição à toda unidade teórica da arte e buscar inspiração no instinto e na agressividade, (orientação de Jean Clarence Lambert, seu fundador), para criar e produzir cultura. E por isso mesmo o curso era aberto a estrangeiros.

meus quadros e eu
Pois bem, certa manhã participei “como cúmplice” da seguinte experiência: um dos pintores, um holandês que parecia as antigas imagens do Cristo, simulou um pórtico no centro de uma sala imensa e vazia lá do museu, que ficava entre dois ambientes cheios de quadros, como se fosse o batente dando entrada para um outro ambiente. Ou seja, pegou um nylon grosso, pregou no chão, “subiu”em linha reta até o teto, pregou num ponto e uns dois metros depois num outro, e desceu de novo, perpendicular, até o chão E sentou-se em uma cadeira ao lado da entrada dessa falsa passagem.
Acreditem: as pessoas vinham andando e não tinham “coragem” de atravessar aquele vão. Contornavam e seguiam em frente, como a gente faz diante de um poste no meio da rua. E era tão evidentemente vazado aquele “portão”, não tinha fechadura, maçaneta, nada, que a resistência em passar por dentro era – acredito – puramente psicológica.
Segundo ele, naquela manhã, ninguém, ninguém, cruzou aquela barreira.
É a ditadura das portas, para muita gente sempre fechadas — para elas. Nem por acaso uma das peças de teatro mais representadas do Sartre é “Huis Clos”, de 1944, (A portas fechadas, ou Entre Quatro Paredes), que reflete a problemática do Outro (a outra margem,outra pessoa). São três criminosos presos em um quarto fechados, sem espelhos e obrigados, portanto, a se enxergarem a partir da interpretação desse Outro, que faz as vezes de carrasco, na medida em que na filosofia sartreana, esse Outro é sempre invasivo e acusador.
Mas o Outro (para aliviar um pouco) pode ser, também, a outra paisagem. O meu inteligente amigo José Paulo Moreira da Fonseca, por exemplo, praticava a sua catarse pintando pontes com jeito de aqueduto: arcadas por entre as quais passa a água…
Por isso, meus queridos amigos, desejo a todos um recomeço-resgate, nesse 2021. Com renovados votos de esperança em nós mesmos. E como no inesquecível jingle: (com) “muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender!”