por Bruno Cavalcanti
Em 2011, Woody Allen produziu um de seus melhores filmes em aceitação de público e crítica em mais de 30 anos de uma carreira relegada aos guetos cults do mainstream cultural. Em Meia Noite em Paris, o americano dava ao público médio uma série de referências acerca da clássica literatura europeia e norte americana.
Através do filme, nomes como o casal Scott e Zelda Fitzgerald, Ernest Hemnigway, Salvador Dali e Gertrude Stein voltaram a figurar na boca do povo, que saiu satisfeitíssimo das salas de cinema com a ideia de que era um pouco mais entendido em temas correntes apenas na alta patente intelectual do mundo ocidental.
Guardadas as devidas proporções, é desse artifício que se vale O Som e a Sílaba, espetáculo dirigido e escrito por Miguel Falabella especialmente para Alessandra Maestrini e Mirna Rubim.
Na história, a jovem Sarah Leighton tem o diagnóstico da síndrome de autismo altamente funcional e é reconhecida como uma savant, com habilidades específicas em algumas áreas, como a música, e pretende desenvolvê-lo para conseguir sua independência e superar os limites impostos pela sociedade.
Para tanto, procura uma renomada professora de canto, Leonor Delis, que a princípio reluta em ensiná-la, mas cede para que a história se desenvolva no tom edificante de costume em produções do gênero.
Entrelaçando a história, Falabella decidiu unir linguagens e incorporou, dentro do universo do teatro musical, árias de óperas famosas que ajudam no desenvolvimento do (já fluido) texto. O autor consegue rara unidade entre canção e prosa neste espetáculo muito mais identificável como uma comédia musicada do que uma comédia musical propriamente dita.
Estão no repertório temas como Vissi D’Arte, da ópera Tosca (1899), Oh Mio Babbino Caro, da ópera Gianni Schicchi (1918), que de Maria Callas tomou pra si, e Quando M’en Vo, de La Bohème (1896), entre outros temas de autores como Puccini, Gounod e Delibes, cantadas com segurança por Alessandra Maestrini e Mirna Rubim, que vivem, respectivamente, aluna e professora.
Atriz de dotes ilimitados, Alessandra Maestrini constrói com bonita sensibilidade sua Sarah, optando por trejeitos delicados e certa languidez no falar. A personagem tem contornos de uma autoconfiança terna e, até, fragilizada, mas com uma veia cômica bastante rica, permitindo que a atriz passeie no terreno em que já reina.
Não chega a surpreender o fato de Maestrini atingir notas e conotações operísticas quando interpreta temas como Je Veux Vivre, da ópera Roméo et Juliette (1867), de Charles Gounod. Soprano absoluta que nada deve a nomes como Angela Gheorghiu e Catherine Malfitano, interpretes notórias da personagem de Shakespeare na centenária ópera, Maestrini não parece buscar atingir notas perfeitas, embora roce a perfeição.
Excelente cantora, Mirna Rubim tem em O Som e a Sílaba a oportunidade de brilhar em cena como não tinha desde que estreou no mundo dos musicais em A Noviça Rebelde, sob a direção de Charles Möeller e Cláudio Botelho, em 2006.
A artista constrói uma personagem dura e com nuances que vão se delineando ao passo que o espetáculo transcorre. Cenicamente, Mirna parece não estar tão bem equipada quanto Maestrini, até porque sua personagem não oferece as mesmas possibilidades da de sua colega. Mas a impressão é falsa.
Sua Leonor transcorre linear na primeira metade do espetáculo, ganhando destaque quando Rubim interpreta Vissi D’Arte, angariando o melhor momento da peça. Aos poucos, a artista se agiganta interpretando uma cantora de ópera frustrada com relações conturbadas com sua filha e seu ex-marido, provando que, além de excelente cantora, é também uma grande atriz.
A direção de Falabella resulta limpa e servil, ainda que apresente alguns problemas na transição de cenas, resultando arrastadas – problema que já apresentara em uma de suas direções anteriores, o monólogo Uma Shirley Qualquer, com Suzana Vieira.
Entretanto, no todo, é um problema que não empana o brilho do espetáculo, que, embora não seja arrebatador, seduz. O cenário Zezinho Santos e Turíbio Santos também resulta sedutor quando se aloca no consultório de Leonor. Ao ilustrar um teatro, soa simplista e pouco envolvente. A luz de Wagner Freire, por outro lado, é excelente do início ao fim.
Falabella, num primeiro olhar, propõe a entrega de um espetáculo popular numa moldura clássica, mas, em análise fria, está além. O diretor une duas linguagens que, dentro do Olimpo das artes, não se bicam. Visto como uma facilitação da ópera, o musical, neste espetáculo, ganha contornos clássicos, atingindo um patamar quase imaculado. O mesmo em que a arte operística sempre esteve.
O Som e a Sílaba se prova um espetáculo simples, de tom popular, mas com um tom altamente ambicioso. Vale o estudo.
SERVIÇO:
O Som e a Sílaba
Data: 06 de outubro a 26 de novembro (sexta a domingo)
Local: Teatro Porto Seguro – São Paulo (SP)
Endereço: Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos
Horário: 21h (sextas e sábados); 19h (domingo)
Preço do Ingresso: R$ 45,00 a R$ 120,00