por Bruno Cavalcanti
Gênero famoso e indispensável na pavimentação do teatro enquanto crítica social por meio do teatro, a farsa é, inexplicavelmente, uma linguagem praticamente morta no mercado brasileiro. Proveniente da Idade Média, se firmou como o principal meio de análise política e social, apelando para um humor que depois viria a ser reconhecido como pastelão.
A linguagem tem como principal artimanha uma comicidade falsamente pueril, mas altamente ácida, daí ter entrado para a história como uma forma de entreter e informar as camadas mais populares sobre os desmandos dos poderosos de cada época. É, portanto, estranho e, na mesma medida, acalentador que Michel III acople a seu nome o subtítulo de “uma farsa à brasileira”.
Tendo como pano de fundo o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a obra, escrita por Fábio Brandi Torres, usa do gênero farsesco para analisar o cenário político que culminou no processo considerado por parte da população como um novo golpe de Estado firmado para tentar “estancar a Lava-Jato” – parafraseando o senador Romero Jucá e não o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Sim, é uma peça ideológica. O que, de forma alguma, configura um demérito – afinal de contas, nenhuma peça é feita com os padrões jornalísticos do mito da imparcialidade. Muito pelo contrário. O mérito do texto está justamente em se assumir corrosivo e crítico, construindo personagens ricos no deboche para com seus equivalentes políticos.
Se Martha Meola constrói uma presidenta repleta de cacoetes e de movimentos pouco desenvolvidos, nada mais é senão uma representação exagerada de uma das personagens mais icônicas da política brasileira nos últimos anos – para o bem e para o mal. Assim como Marcelo Diaz, que encarna um Michel altamente bufão, mas crescendo em tons de vilania, absorvendo com perfeição a proposta de dualidade do texto.
Aliás, a construção de cada personagem, embora se deva ao excelente elenco – como raras vezes se vê em cena em palcos paulistanos, com todos muito bem equiparados – também pode ser creditada ao excelente texto de Torres, que faz rica analogia da farsa com a obra do dramaturgo inglês Willian Shakespeare, bebendo invariavelmente também na obra do português Gil Vicente.
A direção de Marcelo Varzea conduz com sensibilidade e igual mordacidade a encenação, dando aos atores a possibilidade de se proteger em cena, ao expor ao público que tudo não passa de uma obra de ficção baseada em fatos reais. Fica clara essa predileção pela conservação do elenco ao deixar a todos em cena durante todo o espetáculo, fazendo do próprio palco a coxia e abrindo mão de uma caixa preta tradicional. É corajoso e conservador.
Embora retrate o contemporâneo com pitadas de deboche e deliciosa ironia, Michel III – Uma Farsa à Brasileira se ressente de um distanciamento histórico para causar a catarse a que se propõe – e a qual é mais do que capaz de realizar. Há uma aceitação fria por parte da plateia, excessivamente retraída, ou por convicções destoantes, ou puro recolhimento de análise.
Entretanto, é uma peça que, à medida que o tempo for deixando para trás as tensões políticas ainda à flor da pele – principalmente em ano de eleição – poderá ser revisitada e reanalisada como uma das grandes obras de análise da década.
Seja pelo excelente texto de Fábio Brandi Torres (um dos melhores em cartaz atualmente na cidade), seja pelo excelente elenco equiparado em cena, seja iluminação refinada de Lena Roque, que constrói uma harmonia crítica das cenas, sem jamais soar pueril. Vale conferir.
SERVIÇO:
Data: 07 de março a 26 de abril (quartas e quintas)
Local: Teatro Folha – São Paulo (SP)
Endereço: Av. Higienópolis, 618 – Consolação (dentro do shopping Pátio Higienópolis)
Horário: 21h
Preço do ingresso: R$ 30,00 (setor 2); R$ 40,00 (setor 1)