por Patrícia Konder Lins e Silva
Decidi que estava em tempo de reorganizar meus livros nas estantes, tarefa a que me dedico bissextamente porque exige muito esforço – mental e físico. A cada vez, questiono as classificações anteriores, invento outras e discuto a lógica de todas. Aliás, lógica que só eu percebo. Mas não é assim com todo mundo?
Lembro-me de um texto fascinante, entre tantos, de Jorge Luís Borges, em que ele cita uma taxonomia de espécies de uma suposta enciclopédia chinesa, com a seguinte classificação de animais: a) pertencentes ao Imperador; b) embalsamados; c)amestrados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães soltos; h)incluídos nesta classificação; i) que se agitam como loucos; j)inumeráveis; k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo; l) etcétera; m) que acabam de quebrar o vaso; n)que de longe parecem moscas. Uma estranha classificação sem marco conceitual reconhecível e que Foucault utilizou para exemplificar que todo discurso se legitima de acordo com o contexto em que é enunciado e se associa a relações de poder.
Deixo a pretensão de lado e volto com humildade, depois de lembrança tão grandiosa de Foucault e Borges, à minha modesta classificação de livros que é, como tantas outras, tão esquisita (embora muito menos interessante) quanto a taxonomia dos animais do Imperador.
Pareceu-me simples começar a arrumação pelos livros de que mais gosto. Mas logo desconfiei da pilha que se formou para além do teto e decidi esperar outros critérios que eu acabaria por inventar. Surgiu a ideia de arruma-los pelas nacionalidades. Determinei espaços para livros de literatura estrangeira. Comecei pelos de literatura inglesa. Mas, um livro de literatura inglesa pertencia ao grupo daqueles de que mais gosto e a interseção paralisou a arrumação. E o encontro de livros altos, que não cabem entre duas prateleiras normais, agravou o problema porque um livro de literatura inglesa era dos que mais gosto e era alto. E, para me confundir mais, encontrei um livrinho miúdo, que não pertencia a nenhum grupo da minha classificação. Não era ficção inglesa, nem brasileira, nem francesa, nem era biografia, nem política ou história, nem artes, nem ciências e não era alto, nem dos que eu mais gostava. O livrinho não tinha lugar e eu não queria me separar dele. Imersa em dilemas acabei encontrando carinhos esquecidos e novas implicâncias, aliás, bem vindas, porque preciso me desfazer de livros para esvaziar a estante para os recém-chegados. Mas os rejeitados, com frequência, voltam às prateleiras porque livros são como família, quase impossível passar adiante. Os reencontros logo atraem para releituras e lá se vai a boa intenção de organizar os livros, já que é muito mais prazeroso lê-los. Adia-se a arrumação.
Ler é ótimo, mas possuir livros também é muito bom. É reconfortante saber que o livro está ali, esperando a convocação a qualquer momento, em caso de precisão e vontade. E, para a sorte dos que gostam de livros, compra-los é uma forma de consumismo bem aceita e até admirada.
Tudo isso para chegar a falar do livro eletrônico.
Para a minha geração pré-digital, o livro de papel se confunde com o ato de ler. Nossos afetos se embolam com o cheiro, a capa, a textura do papel, o tamanho, peso, tudo faz parte da nossa experiência de leitura.
Mas a geração dos chamados nativos digitais – a que cresce imersa em bits e bytes – usa a tela como suporte fundamental para qualquer atividade: para ler, para comprar, para se comunicar, para ver filmes, para escrever, para pensar, refletir e viver. Os nativos digitais vivem na tela em todas a instâncias, reais e virtuais. A experiência de leitura deles não passa pelas sensações de quem, quando criança e jovem, não sabia o que era um computador nem a internet. O livro eletrônico proporciona outros deleites: é possível comprar um livro de madrugada, na cama, e começar a ler imediatamente, naquele momento, sem ter que esperar a manhã para ir a uma livraria; é possível carregar para cima e para baixo uma biblioteca imensa, que não pesa e não ocupa um espaço maior do que um livro fino. Novos suportes, novos prazeres.
Na verdade, tanto faz se o livro é impresso ou eletrônico porque ambos proporcionam a possibilidade de ler. As narrativas fazem parte da natureza humana e, enquanto as histórias e a informação forem transmitidas através do código escrito, os livros existirão, não importa em que base, e a leitura continuará a expandir o pensamento humano.
Patrícia Konder Lins e Silva é pedagoga e diretora da Escola Parque. Publicou o livro Inteligência se Aprende, pela Editora Casa da Palavra.