por Mariza Gualano
“O indivíduo em movimento deixa tudo para trás, em ruínas, e converte o que vem pela frente em cenários. Parte para deixar de ser quem era e virar um personagem, um investigador privado ou um cavaleiro solitário. Esta viagem não leva a parte alguma, mas não pode parar.”
As palavras de Nelson Brissac Peixoto, em seu antológico livro Cenário em Ruínas, se encaixam perfeitamente na definição do filme de estrada. Nos road movies, como também são chamados, os personagens se recriam em outra geografia ou correm atrás da epifania da descoberta. Geralmente, mudam a perspectiva de suas vidas.
Partindo ou querendo chegar, vão em busca de uma identidade, ou preferem simplesmente apagá-la. A ação existe, porém, nunca é o mais importante. Muitas vezes a narrativa abusa das pausas, do silêncio e os sentimentos dos personagens estão à flor da pele. O conflito não está fora. A busca pela estrada pode estar ligada a vários tipos de perda que precisam ser vencidas. A procura ou a trajetória em si leva à exploração de outros universos que podem ser hostis, instáveis ou habitados por solidariedade e afetos.
Não é difícil encontrar jornadas mais arriscadas que conservam o cerne do filme de estrada. As belas paisagens estão ali, mas também panoramas precários trazendo à tona as fissuras existentes naquela localidade. A narrativa em movimento e a essência estão no percurso e não no destino final. Jack Kerouac, autor do livro Pé na Estrada/ On The Road (1957), declarou que “a estrada deve, eventualmente, guiar-nos por todo o mundo.” O diretor Walter Salles transpôs para a tela esse clássico que marcou muitas gerações, em 2012, com o título de Na estrada.
Outros filmes se destacam e possuem relevância no gênero.
Sem Destino/ Easy Rider (1969) de Dennis Hopper, por sua transgressão e irreverência ajudou diversas causas políticas. Passageiro Profissão Repórter / Professione: Reporter (1975) de Michelangelo Antonioni, mergulha no vazio existencial do personagem em fuga que ao mesmo tempo procura se reinventar. Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo (2009) de Karim Ainouz e Marcelo Gomes, é um registro do sertão nordestino, embalado pela narração tristonha do protagonista que jamais aparece. Em Thelma e Louise/ Thelma & Louise (1991) de Ridley Scott, as heroínas tomam nas mãos a direção de suas vidas. Família Rodante/ Familia Rodante (2004) de Pablo Trapero revela o retrato melancólico de quatro gerações convivendo dentro de uma van originando desavenças e embates até o destino final. A trilogia de Wim Wenders, Alice nas Cidades/ Alice in den Städten (1974), Movimento em Falso/ Falsche Bewegung (1975), No Decurso do Tempo/ Im Lauf der Zeit (1976) é um belíssimo documento cinematográfico que harmoniza conteúdo e forma e possibilita uma reflexão mais profunda da vida.
Nomadland de Chloé Zhao (2020), expõe com muita verdade o trânsito de vários nômades. A medula do filme e provavelmente de outros filmes de estrada pode estar na indagação de uma personagem, “o lar é só uma palavra, ou é algo que levamos conosco aonde vamos?” Há ainda a ponderação de Locke (Jack Nicholson), no já citado Passageiro Profissão Repórter, “não adianta viajar o mundo se não escapamos de nós mesmos”. Tais considerações cabem com precisão dentro dos amplos sentidos e conceitos dos filmes de estrada.
No cinema, somos todos viajantes.