por Anna Ramalho
Querida mamãe:
Já acumulo mais Dias das Mães sem você do que tive o prazer de ter com você – e com vovó. Infelizmente. Mas você foi um ser tão incrível que teve a elegância de partir antes de virar problema, antes de dar defeito, coisa que temia e esconjurava. Sensação que me toma vez por outra. Pavor de virar estafermo na vida do meu único filho. Ninguém merece. Morrer aos 68 anos foi covardia, ainda podíamos ter tido muitos e produtivos anos juntas.

Minha mãe, meu pai e eu. Ele morreu quando eu tinha 2 anos e ela me criou sozinha, com a preciosa ajuda da vovó
Sinto muito a sua falta, é uma ausência que jamais foi ou será preenchida, um vazio eterno, uma pontada aguda e perene no coração. Muita saudade de você, Mãe. Saudade do seu ar sempre sereno, apesar de todas as tempestades que caíram sobre sua cabeça, saudade daquele senso de humor único, da inteligência afiada, da cultura vasta, de tanta sabedoria, dos preciosos conselhos. Saudade dos seus olhos verdes e mansos. Saudade de lhe ver atacando um acarajé da baiana da rua, saudade de lhe ver fugindo da balança. Saudade daquela voz sempre jovial, do passo apressado e decidido, da bolsa sempre bagunçada, saudade das agulhas de crochê que teciam mantas para o meu filho e aquelas colchas de que nunca gostei, mas usava porque você tinha feito com tanto amor e empenho.
É saudade demais. Demais da conta, como dizem os mineiros.
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Mas ultimamente, juro, tenho até dado graças por você não estar mais entre nós. Isso aqui tá num ponto de esculacho de tal ordem, que uma pessoa tão fina e elegante não suportaria presenciar. Tudo muito vulgar e raso.
Noves fora a vida do país, mergulhado numa crise moral sem precedentes, o que se vê é a parcela mais pobre da nossa desgraçada população sofrendo os horrores do inferno nas mãos de governos incompetentes em todas as esferas, uma bandidagem que mata à luz do dia por um celular, morros tomados por traficantes perigosíssimos. Imagine que, além das dezenas de favelas que você nem sequer conheceu de nome, temos agora um aplicativo (também não é coisa do seu tempo), o OTT – Onde Tem Tiroteio, para o cidadão de bem consultar antes de sair de casa. Seja essa casa onde for. Na Copacabana onde moramos juntas por tantos anos, e por onde andávamos livremente e com segurança a qualquer hora do dia ou da noite, desovaram essa semana um cadáver em plena Rua Sá Ferreira. Aquele Rio que você viveu com seus pais e eu vivi com você acabou. Maria, que há 12 anos trabalha comigo e é meu anjo da guarda, mora na Rocinha. Diariamente arrisca a vida quando sai para trabalhar porque diariamente há tiroteio na comunidade, que, você deve se lembrar, fica em São Conrado, aquela beleza de bairro, com prédios e casarões para os ricos e onde hoje pratica-se exorbitante IPTU. Não demora muito e seus moradores só poderão sair às ruas enfiados em armaduras medievais – e à prova de balas.
Nosso prefeito é uma vergonha, um zero à esquerda, a cidade está completamente abandonada.
Enquanto o pau come, ele prega. É “bispo” – e um tipo de bispo que você não conheceu. Craques em recolher dízimos dos miseráveis que convertem através de uma rede de TV que lhes foi dada em concessão. Do governo, claro. Oram e passam a sacolinha. Disgusting!
De política, aliás, nem é bom falar. Lembra das discussões que você tinha com vovó, PTB X UDN? Multiplica por mil. E aguenta também a falta de educação reinante. Impressionante o baixo nível que reina no Brasil. Não creio que você fosse frequentar as redes sociais – a febre da hora para o bem e para o mal. Não daria conta de lidar com tanta gente apaixonada, de opiniões tão fortes, e muitas vezes de uma falta de educação que choca e machuca os corações mais sensíveis. Machuca também quem ama a nossa língua: o português é tratado com a violência com que se trata os mais reles dos bandidos. De matar de vergonha.
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A falta de modos impera. Lembro tanto da questão que você fazia do “tom de voz”, como criticava quem falasse com voz de gasguita ou, pior, aos berros. Lembro disso a cada restaurante que vou: as pessoas urram, nem gritam mais. Os celulares também não são guardados, o que resulta numa algaravia, num tilintar de sons os mais diversos, que não dá pra entender como se pode apreciar a refeição, o bom vinho (bom vinho, agora, é de lei. Todo mundo entende de pinot noir, de merlot, de cabernet sauvignon… Muitas vezes soa tão pretensioso, tão chaaaato!!!! ) e, sobretudo, o bom papo.
A roubalheira que se pratica é de tal ordem que nem sei como explicar. Doleiros biliardários que lavam dinheiro com paredes e paredes de Di Cavalcanti; mensageiros do poder que correm com malas de rodinha recheadas de grana em plena luz do dia e na maior cara de pau; a sala de um apartamento de um ex-deputado baiano recheada com R$ 55 milhões a serem distribuídos no butim dos poderosos da vez; o ex-governador do Rio no xilindró, com quase 100 processos nas costas por roubalheira desavergonhada; o ex-presidente também em cana por conta de um mal explicado apartamento no Guarujá e ainda vem mais julgamento de malfeitos dele por aí.
O ex-presidente. Tenho cá pra mim que Lula da Silva seria nosso pomo de discórdia. Você teria votado nele e estaria hoje no Lula Livre com certeza. Só por isso dou graças por sua ausência. Nunca gostei de brigar com você. Votei nele também, mas me desiludi. Fazer o quê?

A rosa branca no retrato: a lembrança para a mãe imortal no domingo de todas as Mães
Fique tranquila: continuo me preocupando muito e ajudando os menos favorecidos como posso, como dá, porque por aqui a vida não anda bolinho, não. Seu neto Christiano também. Felizmente, herdou da vó esse traço da solidariedade, esse olhar para os que sofrem e têm menos do que nós. Ser humano bonito o seu neto primogênito.
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No mais, e já que é muita mazela pra pouco espaço, vai tudo bem. Seus bisnetos são lindos e muito bem educados. Minhas duas, Bela Antonia, já teen, 15 anos em dezembro; a pequena Olívia, meu brinde inesperado, uma gracinha com 2 anos e meio; os dois de Bel, a deliciosa Alice, 6 anos, e nosso milagre bem-amado, o Gustavo Raphael, que faz 3 em outubro, graças a Deus. Todos lindos, muito amados e especialmente muito bem criados por seus pais.
Uma descendência à sua altura, minha mãe.
Neste domingo vou botar a rosa branca de sempre em seu retrato. Com muita saudade. E com todo o meu amor.