por Bruno Cavalcanti
Quando foi lançado em 2003, Dogville, o filme do dinamarquês Lars Von Trier, recebeu aclamação internacional por unir em cena um roteiro que desossava a natureza cínica e sórdida do ser social, e uma linguagem cinematográfica que bebia de fontes como o teatro brechtiano e, ainda que indiretamente – e jamais admitido – o Cinema Novo, de Glauber Rocha.
Os cortes de cena, o roteiro ágil, a presença de um narrador onipresente (e onisciente) e o elenco estelar (capitaneado por uma intimista Nicole Kidman) ajudaram a consagrar o título na filmografia do cineasta e o consolidou como uma espécie de provocador, que propunha novas leituras acerca de questões já sacramentadas, como o conceito de justiça social e humana.
Por todos esses fatores, é de se espantar que nenhuma versão para os palcos tenha sido concretizada ao longo dos 15 anos que separam o lançamento do filme, e a estreia de sua primeira adaptação cênica (em 2018, no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro), sob direção de Zé Henrique de Paula. Em cartaz no Teatro Porto Seguro até o dia 31 de março, a versão de Zé Henrique busca recontar essa história com a mesma estética cênica que consagrou o filme.
Não há um cenário realista, tampouco figurinos ou objetos de cena que façam do espetáculo uma montagem usual. Toda a ação se dá por meio do que realmente importa: o texto regular e o bom elenco.
Na pele da jovem fugitiva Grace, Mel Lisboa assume o papel que foi de Kidman nas telas e, se a estrela de Hollywood imprimiu alta dose de delicadeza na dubiedade da personagem – o que gerava certo espanto com seu desfecho –, Lisboa aposta em uma construção dúbia desde o início.
Não há dúvida de que a personagem é sim boa, mas Mel permite que o público não caia em uma zona de conforto e foge a qualquer maniqueísmo, fazendo deste um de seus melhores trabalhos em cena desde seu impressionante desempenho como a roqueira Rita Lee no controvertido musical Rita Lee Mora ao Lado.
Lisboa divide bem a cena com Eric Lanete, um dos destaques da montagem. O ator constrói a figura de um narrador sardônico e envolvente, e desenvolver a trama sem maneirismos, desempenhando papéis secundários com segurança e distinção.
O numeroso elenco, inclusive, é o trunfo da montagem. Entre os 16 atores, é possível destacar o trabalho minucioso de Dudu Ejchel (como o jovem Jason), Munir Pedrosa (o cego Jack McKay), Chris Couto (a comerciante Senhora Hanson), Gustavo Trestini (Senhor Henson), e Marcelo Villas Boas (o mecânico Ben).
Na pele do possível “mocinho” da história, Rodrigo Caetano cambaleia na construção de seu Tom Edson, enquanto Bianca Byington e Blota Filho entregam as interpretações mais seguras e consistentes. Filho cativa como o hipocondríaco Thomas Pai, enquanto Byington destaca sua cansada Vera, mesmo antes de sua grande cena, assumindo o papel de uma vilã torta.
Anna Toledo e Thalles Cabral ficam no limite do histrionismo maniqueísta na construção de suas personagens, enquanto Fábio Assunção e Selma Egrei pouco fazem para defender seu Chuck e sua Ma Ginger, respectivamente. Entretanto, são pequenos pontos que não atingem o trabalho do grupo.
O que realmente soa irregular na montagem é a adaptação de Zé Henrique de Paula. O diretor busca dialogar plasticamente com o filme por meio da inserção de câmeras e vídeos pré-gravados para interagir com o elenco, numa dinâmica que funciona como efeito cênico, mas não desenvolve a trama.
Entretanto, o que realmente causa incômodo é que a contundência da obra surge contestável em cena. À luz dos tempos, a mensagem de Dogville soa pueril. Ainda que haja certa atemporalidade, permitindo indissociável conexão com o cenário político-social brasileiro, a adaptação ressoa apenas como uma leitura estética, que se sustenta menos pela obra e mais pela curiosidade da encenação de Lars Von Trier no palco.
Faltou a Zé Henrique de Paula encontrar em sua versão elementos que realmente intensificassem a reflexão sem cair no lugar comum dos temas já retratados no filme e exaustivamente em cena por coletivos teatrais, que conseguiram desempenho mais arrebatador – como o Pequeno Ato e seus gêmeos Fortes Batidas e 11 Selvagens.
Dogville se mantém, indiscutivelmente, uma obra atemporal, mas que, à luz da história, resiste mais por sua estética alinhada a construção cinematográfica de Von Trier do que necessariamente por seu discurso ou mensagem que, em pleno 2019, soam apenas repetitivas em discursos que se repetem e buscam ser ouvidos e disseminados ao longo de 15 anos.
COTAÇÃO: * * * (BOM)
SERVIÇO:
Dogville
Data: 25 de janeiro a 31 de março (sexta a domingo)
Local: Teatro Porto Seguro – São Paulo (SP)
Endereço: Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos
Horário: 21h (sexta e sábado); 19h (domingo)
Preço do ingresso: R$ 50,00 a R$ 90,00