por Bruno Cavalcanti
Marina Lima
Show: Novas Famílias
Data: 22 de abril
Local: Teatro do Sesc Pompéia – São Paulo (SP)
Foto: Alexandre Calladinni
Lançado neste mês de abril em formato físico e nas plataformas digitais, Novas Famílias, 21º disco da carreira de Marina Lima, é um álbum em que a cantora volta seu olhar cosmopolita para a sociedade brasileira e a forma que ela evoluiu e se relaciona, sem jamais deixar de analisar sua própria história à luz desta realidade.
No show de lançamento do espetáculo, que debutou com duas apresentações nos dias 21 e 22 no Teatro do Sesc Pompéia, a cantora expande este olhar e toma um partido, se posicionando como uma artista de anarquia latente.
Neste espetáculo, Marina deixa claro que continua sem olhar para o passado, mas também dosou seu olhar para o futuro buscando foco no presente. O cenário tem base em projeções que refletem desde imagens íntimas (que compõem o clipe oficial da música-título a disco e show) até a figura de políticos ligados à chamada “farra dos guardanapos”, que também fazem parte do clipe Só os Coxinhas, funk controvertido que fez com que as redes sociais identificassem uma posição anti-conservadorismo na imagem da cantora.
Ainda que esta posição sempre estivesse latente em sua obra desde 1979, quando lançou seu primeiro disco, Simples como Fogo, Maria sempre foi discreta e elegante nesta e em outras searas. Em Novas Famílias a cantora responde ao chamado da sociedade e se declara uma progressista. Mas sem jamais deixar de ser a artista de tons e notas que compôs a trilha sonora de boa parte do cancioneiro emocional brasileiro.
Tendo consciência deste papel, Marina entrega, logo na abertura, interpretação visceral de Acontecimentos, canção até então banida de suas últimas apresentações, que retorna agora revigorada pelos arranjos pensados pelo trio Dustan Gallas, Arthur Kunz e Leo Chermont.
Logo em seguida, volta a se posicionar perante a vida, sem deixar de afagar a memória afetiva do público que lotou as duas apresentações no anfiteatro do Sesc Pompéia ao som de Nem Luxo, Nem Lixo, com direito a citação de A Cidade, de Chico Science – canções herdadas de seu único álbum de interprete, Abrigo (1995).
Reverenciando a própria vivência, a cantora enlaça as novíssimas Juntas e Árvores Alheias na pressão do rock eletrônico que habituou sua obra nos últimos 20 anos desde que iniciou o flerte com a linguagem midi na edição do (incompreendido) álbum Pierrot do Brasil (2008).
Sem soar saudosista, a cantora pesca de seu repertório Muito, canção de Caetano Veloso lançada originalmente pelo autor em 1978 no disco Muito – Dentro da Estrela Azulada e regravada por Marina no ano seguinte em seu supracitado disco de estreia, Simples como Fogo e esquecida no tempo até então.
Sem o mise-em-scène de shows anteriores como Síssi na Sua (2000) e Primórdios (2005), Marina ainda exala elegância ao sair de cena para uma troca de roupa, dando vazão ao clima mais intimista da noite, quando a cantora saca de seu violão para dar voz a Novas Famílias, guarânia composta com Marcelo Jeneci inspirada no cantor sertanejo Daniel, e Pessoa, o hit do compositor Dalto que Marina tomou pra si em 1993 em gravação icônica no álbum O Chamado.
Com direito a já costumeira citação a Leão Ferido, Pessoa foi uma das canções que contou com couro espontâneo de um público que já não estava preocupado com detalhes já insossos, como a já resolvida questão da voz da cantora que se mostrou mais forte e quente, mostrando clara evolução de seu show anterior, o acústico No Osso.
O espetáculo gerou disco do qual Marina repescou Partiu, excelente tema composto com Adriano Cintra que passou quase despercebido na galeria de hits da cantora, gravado quase que simultaneamente pela artista e pelo cantor Felipe Catto.
Antes, a compositora já havia dado segunda chance a Anna Bella, canção lançada em seu álbum Lá nos Primórdios (2006) com melodia menos inspirada do que a letra. O tema é uma homenagem da cantora com seu irmão e parceiro Antônio Cícero à artista plástica carioca Anna Bella Geiger, que completou 85 anos neste ano de 2018. Sem, contudo, abrir espaço para alguma canção de seu álbum de inéditas anterior, o urbano Climax (2012).
Marota, Marina abriu cumplicidade com a plateia ao convidar o público para subir no palco e dançar ao som de Mesmo que Seja Eu, hit de Erasmo Carlos que a cantora ressignificou na década de 1980 ao interpretar os versos “você precisa de um homem pra chamar de seu, mesmo que esse homem seja eu”, e que volta a dar novo significado ao transformá-la numa “sofrência”, em referência ao gênero sertanejo que tornou famosas duplas femininas como Simone & Simaria e a compositora Marília Mendonça.
Polivalente em ritmos, o disco levou a cantora para novas searas musicais contemporâneas, inclusive para o tecnobrega, onde a cantora situou a ótima É Sexy, É Gostoso, e abriu caminho para o supracitado funk Só os Coxinhas, que contou com citações de figuras como Jair Bolsonaro e Michel Temer.
Funk carioca na versão mais ortodoxa do gênero, Só os Coxinhas chegou a causar certo estranhamento no público mais saudosista que esperava ver (e ouvir) uma Marina mais ligada a qualquer tradição musical menos periférica, mas se tornou veículo perfeito para a cantora reafirmar sua contemporaneidade e seu comprometimento com a eterna juventude de sua obra musical.
Para este público mais saudosista, a cantora guardou a doída Não sei Dançar, que usou para sair de cena para uma última troca de roupa e retornar para o último bloco que guardou o momento mais transgressor de um show que transpira eletricidade e anarquia.
Ao som do protesto Mãe Gentil, introduzido com o Hino Nacional Brasileiro, Marina fez menção ao violento assassinato da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro, no último dia 14 de março de 2018. Para o tema, composto em parceria com Letícia Novaes, a Letrux, Marina vestiu uma balaclava em referência aos manifestantes conhecidos como blackblocks.
De fato anarquista, a canção faz referência aos protestos em passagens como “com um galão se vira o jogo” e nos vocais que clamam por “gasolina neles”. Concentrando também uma gama de hits como O Chamado, Fullgás e À Francesa, antes de sair de cena ao som de Pra Começar, o hit de 1985 que a cantora gravou pela primeira vez em estúdio neste disco de 2018, e deixando de fora o até então irrepreensível Virgem (1985).
Ao voltar para o BIS, já com a plateia em pé e pronta para a inevitável Uma Noite e ½, que encerrou o show na pressão, Marina comprovou que ainda mantém um discurso, mais do que moderno ou contemporâneo, relevante e de encontro com as ânsias sociais de um Brasil que só se entende no caos.
Preste a aportar no Circo Voador para única apresentação, Novas Famílias entra para o hall de um dos melhores shows da temporada e de Marina Lima que, totalmente de bem com a vida e sem mais questões urgentes para resolver (ou explicar), mira seu olhar para uma sociedade que precisa de análise.
SERVIÇO:
Novas Famílias – part: Quinho e Letícia Novaes
Data: 05 de maio
Local: Circo Voador – Rio de Janeiro (RJ)
Endereço: R. dos Arcos s/n – Lapa
Horário: 22h (abertura dos portões)
Preço do ingresso: R$ 40,00 a R$ 80,00 (primeiro lote); R$ 50,00 a R$ 100,00 (segundo lote)