por Reinaldo Paes Barreto
No O Globo desta semana, o antropólogo, historiador e escritor Roberto DaMatta escreveu Eça de Queiroz e os políticos, em que compara o rompimento de tabus morais e socais dos personagens do autor do Primo Basílio na segunda metade do século XIX ao despudor de alguns políticos brasileiros e os trágicos efeitos na sociedade brasileira atual.
Mas para focarmos nas personagens femininas desse extraordinário satírico que através do seu monóculo identificou e ridicularizou um Portugal perdido no tempo, obcecado pelas aparências e deslumbrado com o falso-novo, e o “chique”, importados de Paris-de-França (e o pintou com as cores da gargalhada na esperança de mudar esse monumental atraso), há que “começar pelo começo”, como diria o Conselheiro Acácio, esse outro tipo eterno do burguês “cauteloso pouco a pouco”.
Eça nasceu na Póvoa do Varzim, uma vila de pescadores, com o sol em Sagitário, em 25 de novembro de 1845. E morreu em Paris, aos 54 anos, na sua casa em Neully-sur-Seine, há 120 anos.

Eça em companhia da mulher, no seu jardim pouco antes de morrer
Tinha algum dinheiro, mas estava longe de ser rico. Como escritor andava sempre na jugular dos editores; e como diplomata … bem, deixo a explicação para o embaixador português aposentado Francisco Seixas da Costa, na eloquência dessa deliciosa narrativa:
— Ontem, na rua, caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima, o infeliz revelou toda a verdade. Era embaixador de Portugal. Deram-lhe, logo, bifes. E o desgraçado sorria, com lágrimas nos olhos…”
Eça morreu moço, mesmo para a época, provavelmente de um câncer no estômago, o órgão de choque de um gourmet como ele. E aí se mesclam no gourmet a criatura e a criação, porque não só frequentava as tascas e restaurantes mais interessantes da Lisboa, farta na mesa e nos copos, como descreveu com minúcias de um blogueiro moderno em muitos dos seus romances, os requintes de banquetes “à francesa” ou as delícias de repastos “de raiz”, como o degustado por Jacinto na Quinta de Tormes!

Eça já diplomata. E dentuço!
Aliás, a sequência do peixe entalado no elevador de carga da mansão do Príncipe da Grã-Ventura, nos Champs Élysées, por exemplo, (A Cidade e as Serras) poderia ter sido filmada pelo Woody Allen ou o Fellini. E a narrativa dos vinhos, champagnes, cognacs e charutos servidos no Ramalhate (solar dos Maias), se contextualizados, estariam hoje no YouTube.
No entanto, a sua outra característica – as obsessões – o fazia ter pavor de engordar. Acabava de comer e ficava de pé, ou então andava quilômetros. Tudo, menos terminar como o seu caricato Damaso Salcede, néscio, com as calças a estalar nas coxas. E o seu humor andava junto com a digestão. Se pintava a si mesmo como uma figura com pernas de cegonha, pálido na aparência e negro no vestir. E, aliás, confessava: visto-me como inglês, penso como francês e o que me salva é um gostinho depravado pelo bacalhau…
Mas no cardápio dessas obsessões, o prato de resistência foi, sem dúvida, a sua origem e primeira infância. Ou seja, o carma de ter sido registrado como filho de José Maria e de “mãe ignota”, isso em uma sociedade agrária, preconceituosa, carola e atrasada do fundo de Portugal, na primeira metade do século XIX, foi uma ferida insanável.
Cresceu sofrendo as humilhações de esconder a sua origem, da casa onde nasceu à certidão de nascimento. Daí, três consequências: 1) a primeira infância, mudando de endereço e de cidade, foi “vingada” em seus personagens. Todos têm endereço com nome da rua, número da porta e localização do andar; 2) Eça só começa a contar de si a partir de Coimbra, já homem feito; 3) inconscientemente (talvez) tornou-se misógino.

estátua do Eça no Chiado (*)
E o pior: esse trauma do filho ilegítimo vai-se refletir no perfil de todas as suas personagens femininas. Todas elas transgressoras. O que varia é o grau, que vai da beata que exorciza os seus pesadelos eróticos com penitências horrendas, à dissimulada, à frívola, à chantagista, à adúltera… até chegar à incestuosa.
Corte para a pergunta: e se o Eça tivesse sido psicanalisado durante três, quatro anos, modelo ortodoxo. Três vezes por semana, sessões individuais?
Impossível. Porque a conta não fecha. Eça viveu sua vida plena entre 1865 e 1900, ano de sua morte (16 de agosto). Casou-se, inclusive, aos 40 anos, com a Emília de Castro, com quem teve quatro filhos. E Freud, embora tivesse nascido apenas 11 anos depois dele, só escreveu o seu primeiro livro em 1900. E o segundo psicanalista “disponível” — Carl Jung – nasceu 20 anos depois do autor da Relíquia e formou-se em 1901, por sua vez o ano de nascimento de Lacan! Ou seja, Eça descoincidiu com a psicanálise.
Remate: mas se eles tivessem sido contemporâneos e o Eça tivesse sido um disciplinado paciente de Freud, as suas personagens teriam sido castas e pudicas? E, nesse caso, esse gênio rebelde teria sido um cronista morno, “a descrever” comportadas tardes em família ou elegantes saraus em torno do piano? Pouco provável. Porque como bem argumenta o meu bom amigo, médico e psicanalista Luiz Alberto Py, a cura das neuroses não retira ao gênio — genialidade. Altera o foco. Eça continuaria sendo, sem dúvida, o mais fulgurante romancista português do século XIX mas, possivelmente, as améliazinhas e marias eduardas seriam menos infratoras. Quem iria para o purgatório seria o reino, o governo, o ensino, a Igreja e o Portugal a quem Neptuno e Marte não mais obedeciam…
E com certeza o Padre Amaro continuaria no inferno…
(*) nem sempre as suas relações com o universo feminino foram descritas com o “manto diáfano da fantasia”.