Estava decidida a não falar de tristeza – sentimento que nos acompanha desde a última quinta-feira, a par e passo com a revolta. Queria, nesta crônica, espantar a angústia, o medo, a dor, na tentativa de começar a semana de uma forma mais leve, mais pra cima.
Não deu. Não dá. Escrevo num domingo em que, ao acordar, soube da morte do Reali Júnior, amigo querido, embora nem sempre tenha estado com ele o tanto que gostaria – principalmente pela distância geográfica, já que ele morou a maior parte de sua vida em Paris, onde o conheci há 30 anos, e, já nos últimos anos, depois que a doença o pegou, em São Paulo, aonde infelizmente vou menos do que deveria e gostaria.
Quando ainda tentava absorver a morte do amigo, me chega a notícia de outra perda: foi-se minha querida tia Léa Millon. Tia torta, como foi tia torta de tantos outros sobrinhos que ela botou sob suas asas amorosas. Somos muitos os sobrinhos desta dama que acaba de nos deixar. Bonita como a sobrinha de fato Patrícia Pillar, os grandes, brilhantes e vibrantes olhos azuis sempre abertos e atentos a tudo, tia Lea foi capaz de vencer um câncer, mas tombou graças à inépcia do nosso poder público. Aquela verdadeira força da natureza, a mulher de 81 anos que se preparava para mais uma viagem à Itália que tanto amou, tal como a Teresinha da cantiga de roda, de uma queda foi ao chão – porque o chão que pisava naquele momento, no Leblon, onde vivia, tinha uma pedra portuguesa solta na calçada. Como há várias em todos os cantos da cidade que será sede de Copa do Mundo e Olimpíadas. Guerreira, ela lutou por 45 dias, mas acabou vencida. Cirurgias, anestesias, intubações, medicamentos, sedações, tudo isso foi demais para aquele grande, generoso e alegre coração, que ontem parou de bater.
O domingo está tão negro pra mim quanto foi a quinta-feira sangrenta.
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Conheci o Reali através de minha querida amiga Rosa Furtado ( que também pouco vejo, mas está aqui no Rio e a amizade sólida, que vem da adolescência, pode se dar ao luxo de eventuais interrupções), quando ela ainda era tão somente Rosa Freire d’Aguiar, correspondente da Manchete em Paris. Brilhante correspondente, como é brilhante em tudo que faz. O Reali também era correspondente, do Estado de São Paulo, mas todos viram irmãos quando estão fora de seus países – se ajudam, se falam todo dia, comparam anotações, e também se encontram socialmente, jantam um na casa do outro, enfim, formam uma espécie de família momentaneamente exilada de seu país. Acho que foi em 1978, quando estive hospedada com Rosa, que pela primeira vez conheci o Reali e sua parte inseparável, a Amelinha, e as filhas pequenas. Mais tarde, uma delas deslumbraria o mundo com sua beleza e seu enorme talento: a atriz Cristiana Reali. Que é a cara da Amelinha. No apartamento parisiense, me sentei na mesma sala freqüentada por figuras como Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Jorge Amado, Leonel Brizola e tantas outras personalidades históricas do Brasil, que os Reali recebiam com a mesma simplicidade, a mesma alegria, o mesmo calor humano.
A última vez em que o vi, foi também um momento de dor: quando Celso Furtado, honra e glória deste país, marido da Rosa e nosso amigo comum, morreu em 2004. Foi um abraço desolado o que trocamos no velório na Academia Brasileira de Letras.
Como vai daqui, desolado e forçosamente distante, o meu carinhoso abraço a Amelinha e às meninas Cristiana, Mariana, Luciana e Adriana – a brigada feminina do doce e competentésimo Elpídio Reali Júnior. Um jornalista que encheu de orgulho a sua geração.
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Minha querida Tia Léa conheci por intermédio de Gilda Mattoso, a amiga de fé, numa noite em que fomos jantar em casa de Flora e Gilberto Gil. Tia Léa era tia de fato de Drão, segunda mulher de Gil e irmã de Dedé de Caetano, mas era também muito amiga de Flora. Tia Léa era uma mulher notável. Dona de memória prodigiosa, contava casos com a maior graça e nunca errava datas ou nomes.
Tempos depois do nosso primeiro encontro, Gilda iria a trabalho para Roma – onde se prestaria, no emblemático Teatro Sistina, uma homenagem a Vinicius de Moraes, Tom Jobim e a Tia Léa, por seu incansável trabalho de divulgação da MPB na Itália. Fui junto. Há tempos queria voltar à Itália e o pretexto não poderia ser melhor. Quando Gilda voltou para o Brasil, a convite de Tia Léa, fiquei com ela e a filha, Silvinha, num apartamento que tinham alugado em Roma, até partir para o tour que faria por Florença e Veneza com minha mais constante companheira de viagens, Gilsse Campos.
Tia Léa era uma pessoa tão incansável no seu bem-querer que, sabendo que meu filho acabara de se formar chef, um belo dia me apareceu no apartamento de Roma com cortadores especiais para raviólis, canelonis e que tais, que comprara especialmente para ele. Essas coisas fofas, carinhosas, eram muito dela.
Choro agora, entre tantos pesares, porque não contava com o inesperado – e o ravioli do Chris que tanto prometi a ela não saiu… Imperdoável!
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Acredito na vida eterna, na comunhão dos santos, mas também creio que vamos todos nos encontrar para o derradeiro banquete. Vamos todos nos cruzar novamente. E também fazer novos conhecimentos. Desconheço se Reali e Tia Léa se cruzaram algum dia. Se se cruzaram, espero que se reencontrem. Se não se cruzaram, que se cruzem aí em cima e levantem um brinde por todos nós que por aqui ficamos – saudosos, tristonhos, infelizes.
Ciao, carissimi! À bientôt!