por Bruno Cavalcanti
Foi entre as décadas de 50 e 60 que se criou, principalmente nos Estados Unidos, uma série de dramas psicológicos envolvendo relações familiares, laços amorosos ou simplesmente a representação do que se convencionou a ser chamado de “natureza humana”. Embora tenha ganhado popularidade sob a engenhosa dramaturgia de nomes como Edward Albee e Harold Pinter, o gênero já encontrara abrigo sólido na obra de autores como Tennessee Williams, Eugene O’Neill e, claro, Sófocles, com tragédias familiares, entre elas a clássica Édipo Rei.
Nunca Fomos tão Felizes, nova produção do diretor e dramaturgo Dan Rosseto, portanto, não pode ser lida como uma obra de reinvenção da roda teatral. Ao menos não como investidas anteriores do autor, que desafiou as regras do jogo com o antimusical Enquanto as Crianças Dormem (2017), e na fusão do expressionismo alemão com o universo rodriguiniano na segunda montagem de Diga que Você já me Esqueceu (2018). Neste drama, Rosseto opta por caminhos, a princípio, mais seguros.
A premissa é relativamente simples: um casal recebe outro para um jantar e, numa noite regada a álcool e jazz, as máscaras sociais caem e os segredos são revelados. Contudo, Rosseto imprime sua identidade neste texto que guarda características que o faz resvalar na dramaturgia, hoje, clássica. Seguindo sua própria premissa de que nenhuma personagem tem redenção, o autor lhes imprime características que fogem ao maniqueísmo.
A jovem e aparentemente ingênua Nancy guarda um segredo que, embora esteja longe de ser surpreendente, ajuda a desconstruir a imagem imaculada que é pintada ao longo da primeira metade da peça. Assim como a sardônica e frígida Simone, que se desconstrói para atingir seu lado frágil frente às investidas sexuais do marido, o empresário Billie.
Por sua vez, o ambicioso e inescrupuloso Charlie mostra-se vulnerável frente ao destino da esposa, enquanto Billie, construído como um típico machista bem sucedido, se contorce frente ao fracasso. Única personagem distante das máscaras sociais, Frank, o irmão mais novo de Charlie que sofre da síndrome de Tourette, é uma espécie de alívio humano frente às máscaras sociais – ainda que também guarde seu próprio segredo.
Como em suas produções anteriores, Rosseto reúne em cena um excelente elenco, que valoriza não apenas o texto, mas também sua direção – que, a cada trabalho, se comprova mais depurada, com um nicho bem sedimentado.
Na pele da jovem Nancy, Larissa Ferrara consegue um de seus melhores desempenhos em cena. A atriz, que já vinha de um trabalho expressivo com Rosseto – o supracitado Diga que Você já me Esqueceu –, constrói uma jovem ingênua que, mesmo frente a uma grande virada, não abandona o tom doce e angelical, evitando muletas de interpretação e caminhando por escolhas pouco óbvias. A atriz entrega um ótimo desempenho quando controla a vulnerabilidade tanto psicológica quanto alcoólica de sua personagem.
No embate com uma inspirada Nicole Cordery, Ferrara também cresce, jogando em tom de igualdade com a (excelente) atriz, que consegue destaque absoluto na montagem. Com um timming cômico raro, Cordery mantém a plateia na mão do início ao fim do espetáculo. Sua Simone se despe de maneirismos quando assume o embate com o marido, Billie, e atinge seu ápice em uma interpretação delicada e devastadora.
Ponto também para Eduardo Martini que, como o inescrupuloso empresário falido, constrói uma personagem altamente polida – que não é surpresa para quem acompanha os dramas encenados pelo ator, como o farsesco Dark Room (2016) e a doída Depois Daquela Noite (2018). Com talento acima de qualquer suspeita, Martini promove uma grande virada sem apelar para qualquer maneirismo. Seu embate com Cordery é um dos grandes momentos do espetáculo.
Na pele do ambicioso Charlie, Mateus Monteiro, contudo, rende menos que seus colegas. Grande ator, Monteiro parece pouco a vontade no papel. Seu desempenho correto, faz com que seu Charlie não aconteça com a força que poderia. É importante ressaltar, entretanto, que o nervosismo de uma estreia também pode ser fator essencial no desempenho de uma atuação e que, ao longo da temporada, a personagem pode crescer.
Por fim, Luccas Papp, na pele de Frank, é outro destaque positivo na montagem. Com ótimo tempo cênico, o ator constrói uma personagem pautada pelo tempo da delicadeza, com um final comovente. Papp aproveita suas poucas incursões em cena e consegue ser um dos destaques desta montagem cheia de acertos.
Um dos principais, inclusive, é a luz de Kleber Montanheiro. Se o figurino, também assinado pelo multiartista, peca em alguns aspectos – como a caracterização de Nancy que pende para um tom angelical um tanto maniqueísta –, a luz é uma das mais bonitas criadas por Montanheiro. Ainda que surja sóbrio de início, o desenho vai moldando um clímax de acordo com a evolução dramatúrgica que inebria.
Regado a um bom repertório jazzístico – que soa servil ao explorar pouco o gênero, focando em temas mais conhecidos da obra de nomes como Nina Simone, Billie Holiday e Cole Porter, principalmente, na voz de Frank Sinatra –, Nunca Fomos tão Felizes é pedra menos experimental na obra de Rosseto, mas nem por isso deixa de ser uma das melhores montagens deste diretor de 38 anos que, a cada espetáculo, depura sua própria linguagem, solidificando um caminho que, a nível de comparação, pode ser referenciado ao universo tragicômico do nova iorquino Nicky Silver.
Enfim, em cartaz de sexta a domingo no Teatro Itália, Nunca Fomos tão Felizes é ótimo passeio dramatúrgico para se entender não apenas o universo de Rosseto, mas também todo um universo teatral frente às famigeradas relações humanas que, ao longo dos anos, parece ficar batida, mas sempre encontra quem a inove.
COTAÇÃO: * * * * (ótimo)
SERVIÇO:
Nunca Fomos tão Felizes
Data: 18 de janeiro a 17 de março (sexta a domingo)
Local: Teatro Itália – São Paulo (SP)
Endereço: Av. Ipiranga, 344 – República (próximo ao metrô República)
Horário: 21h (sextas e sábados); 18h (domingos)
Preço do ingresso: R$ 30,00 (meia) a R$ 60,00 (inteira)