por Bruno Cavalcanti
Uma das histórias mais clássicas do imaginário ocidental, Carmen, a novela do escritor francês Proesper Mérrimée, já se tornou filme, romance, musical e, em sua forma mais conhecida, uma ópera assinada pelo também francês Georges Bizet, que popularizou o gênero dentro da cultura pop através de árias famosas, como a atemporal Habanera.
Se propondo como um novo olhar acerca da clássica história publicada em 1845, Carmen, ora encenada no Teatro Aliança Francesa, na República, busca recontar a tragédia da personagem-título, uma cigana que prevê a própria morte ao se envolver com o ex-policial José.
Assinado por Luiz Farina, o drama coloca certo holofote sob a personagem, dando-lhe voz na discussão acerca de sua história e seu assassinato. O texto recorre a pautas contemporâneas, como as relações abertas, o poliamor, o ciúme doentio e uma série de elementos que compõem o chamado crime passional, se contrapondo à novela original – e às montagens que a sucederam – e retirando de Carmen o peso da culpa da liberdade.
Na montagem idealizada por Natália Gonsales e Flávio Tolezani (que encabeçam o elenco o lado do ator Vitor Vieira), a história se desenvolve graças ao ciúme de José e sua incapacidade de conviver frente à realidade proposta por Carmen.
Aliás, o drama, que estreou na última sexta-feira, 30, é um dos pontos máximos nas interpretações de Gonsales e Tolezani, que conseguiram repetir, com mais brilho, a sintonia apresentada no último trabalho como dupla, Fala Comigo antes da Bomba Cair, misturando os universos do norte americano Tennessee Williams e do dramaturgo paranaense Mário Bortolotto.
A dupla exibe perfeita sintonia e intimidade, criando (e elevando) certa tensão sexual, que resulta cruel à medida que a montagem prossegue. Mérito também da direção de Nelson Baskerville, que traduz de forma densa e febril a proposta inicial de Farina, recorrendo a elementos do teatro experimental (e até nonsense).
Baskerville, contudo, jamais abandona o romance clássico no qual o texto se baseia ao contar o trágico triângulo amoroso em que a cigana se vê enredada quando se relaciona com José e com sua própria liberdade.
Esta metamorfose de signos e linguagens está inserida tanto na cenografia e na iluminação pensadas por Marisa Bentivegna quanto nas interferências estéticas promovidas pelo diretor e pelo compositor e diretor musical Marcelo Pellegrini.
Um dos pontos mais altos, aliás, é a trilha de Pellegrini, que atinge ponto de ebulição com a inclusão de Matei, a canção criminosa-passional popularizada por Vicente Celestino e (bem) interpretada por Flávio Tolezani.
Matei, inclusive, alude à inflamada discussão acerca da presença do machismo e do feminicídio na música popular brasileira ao longo de sua existência. A canção lançada pelo ébrio Celestino em 1940, é um dos exemplos mais pungentes dessa realidade que já atingiu compositores como Dorival Caymmi, Ary Barroso, dentre outros, e chegou a ponto máximo com o caso do cantor Lindomar Castilho que, em 1981, matou com um tiro sua então companheira, a também cantora Eliane Aparecida Grammont.
Repleta de referências que trabalham com uma realidade atemporal e sempre presente, porém discutida com a seriedade que merece apenas recentemente, Carmen resulta numa montagem que não reinventa a roda dramatúrgica ao colocar a personagem-título no centro da discussão, mas se põe como pedra importante ao tocar sem medo num ponto que transborda o cenário artístico (mas o engloba).
Mais do que uma ótima encenação, Carmen é também o ponto máximo na fusão do teatro contemporâneo com os elementos clássicos. Não tem medo de parecer cafona – embora nunca o pareça – tampouco se opõe ao entretenimento. É uma encenação que, ao longo de (imperceptíveis) 70 minutos, chega ao âmago de uma discussão importante sem demagogias. É corajosa sem renegar as raízes do romance tradicional. E é aí que reside seu triunfo.