por Anna Ramalho
Se viva fosse, minha avó – a grande e combativa Amneris – teria completado ontem, 11 de abril, 130 anos. Morreu aos 95, pouco mais de um ano depois de sua filha amada, minha mãe, que muito precocemente partiu. Viveu muito, viveu bem a maior parte de sua vida, mas nem por isso deixo de sentir sua falta -uma presença sempre muito forte, de muita personalidade – que me legou preciosos ensinamentos de vida.
Nunca esqueço da vovó, a única que conheci, já que meu pai ficou órfão muito cedo. Ela me criou, enquanto mamãe ia à luta como chefe de família que foi desde que tão cedo enviuvou com duas filhas para criar. Ela está sempre comigo – por vezes, parece que ouço sua voz, sempre no comando, sempre cobrando, sempre mostrando quem é que mandava naquele pedaço. Não era de nhenhenhém, não distribuía balas nem beijos. Doce engorda, beijo tem hora certa. Era seca, mas eficiente. Dura, mas justa. E o mais importante: ninguém nos amava como ela. Vovó seria capaz de agredir fisicamente aquele que ousasse nos fazer mal. Certa vez, queria ir tomar satisfações de uma vizinha, cujas filhas praticavam bullying com minha irmã. Mamãe, sempre a força doce e conciliadora, teve que atuar no deixa-disso, antes que Amneris partisse pro dedo em riste. Ela não dava beijo nem passava a mão na cabeça, mas foi a fortaleza inabalável sobre a qual nos apoiamos com toda a fragilidade de meninas que sofreram perdas cruciais quando mal falavam.
Vovó foi um farol na minha vida. Vovó me deu força e coragem. Vovó sempre me deu a mão.
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Sou uma avó diferente, mas, claro, tenho o meu lado Amneris. Dia desses mandei para Bela Antonia – minha adorável teen de 15 anos – foto de uma camiseta com os seguintes dizeres: “ Cinco coisas que você deveria saber sobre minha avó: ela é uma vovó doida; ela me ama; ela não consegue controlar a boca; ela tem acessos de raiva e uma séria antipatia por pessoas estúpidas; mexa comigo e ninguém jamais vai encontrar o seu corpo.”
Nessas cinco coisas, só não diria que a minha vó era doida. Eu sou, ela não, kkkkkk. Aliás, kkkkk foi a reação da minha neta, que me conhece muito bem.
Vovó e eu. Assim como amei – e amo – minha avó, assim amo minhas netas. Até nisso somos iguais, ela e eu. Ambas avós de duas meninas. Ela cansou de tanta mulher – foi mãe de três e avó de duas. Sua maior alegria foi o nascimento do bisneto varão, meu filho Christiano. Lembro quando a deixei no veraneio da casa de Teresópolis e voltei ao Rio para aguardar o nascimento do meu filho – que foi também primeiro neto, primeiro bisneto, primeiro sobrinho dos dois lados, o materno e o paterno. Ela foi me acompanhar até o carro e fez questão de frisar: “Que tudo corra bem! Se for menino, telefona correndo. Se for mais uma mulher, não precisa ter pressa, não.” Teve o que quis, foi de cadeira de rodas me visitar na Clínica São Vicente para conhecer o bisneto e, quando morreu, Chris estava com 6 anos. Já eu sou tão feliz quanto ela foi com minhas duas garotas. Não preciso de mais nada.

Álbum de família : com o bisneto Christiano nos braços, minha avó Amneris e eu na Clínica São Vicente ( Março de 1977)
Por minhas netas sou capaz de tudo. Até de aguentar gente estúpida, o que hoje é a maior das declarações de amor. Vamos combinar que gente estúpida, por aqui, brota, atualmente, como chuchu na Serra.
Antonia e Olivia iluminam e aquecem a minha vida. São faróis também, como vovó foi.
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Essa crônica de amor – intenso, no passado e no presente -, este texto que traz tanta saudade em suas linhas, é a minha homenagem a Lúcia Xavier Sarmento Neves, a avó de apenas 63 anos, que morreu cuidando de sua netinha tão linda, a Julia Aché, 6 míseros anos, ambas vítimas – assim como o motorista Marcelo Tavares – da fúria da natureza e da absoluta incúria, incompetência e irresponsabilidade de nosso poder constituído.

Uma imagem para sempre: Lucia Xavier Sarmento Neves e sua netinha Julia Aché
Não houve avó que não chorasse a morte de Lúcia. Todas morremos um pouco com ela e Júlia. Que agora seguem juntas, sempre unidas na luz e no amor, mas do outro lado do rio.