por Vagner Fernandes
Ano passado, após ser aprovado numa seleção para o doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, decidi abdicar da vaga em função da luta pela sobrevivência financeira. Exausto e desesperançoso, cedi justamente à pressão dos que buscam escindir para se manter no poder. Um equívoco, uma burrice. Com a morte do meu avôpai, percebi que tendia a jogar fora todo o ensinamento que dele herdei. Seu Gentil dizia que a educação é o único caminho possível de revolução e transformação social, a lufada de ar de que pobres precisam para ascender socialmente e enlouquecer opressores. No dia 23 de julho deste 2021, enquanto sepultava o corpo daquele homem de 97 anos, descendente de pessoas escravizadas, lembrei-me de uma de suas muitas reflexões sobre a existência: “caixão não tem gaveta. A única coisa que você leva, portanto, é o conhecimento. Deixem-lhe tirar cargos e cortarem-lhe o salário, mas não permita jamais que lhe corroam os sonhos e o desejo de vencer”.
Uma semana depois, inscrevi-me novamente em um novo processo de seleção para o doutorado. O resultado saiu sexta-feira última. Fui mais uma vez aprovado e agradeci ao griot que me criou e com o qual compartilhei 49 anos de vida pela energia emanada do Orum. Sou um homem de fé. Meu avô era agnóstico, mas mantinha um Jesus crucificado na parede do quarto. Também gostava de assistir na TV ou ouvir pelo rádio os programas católicos. Via claramente nele uma crença que talvez nem ele próprio soubesse haver. Nunca conversamos sobre religião, embora nos conectássemos pela espiritualidade. Meu avô foi o meu Xangô na derrubada das pedreiras do cotidiano; o meu Ogum na luta contra os obstáculos e os que ainda se encontram em estado primitivo de evolução; o meu Oxóssi nas trilhas em busca das oportunidades; o meu Exú na abertura de caminhos para os movimentos do existir e na conexão do Àiyé com o Orum. Ele não tinha ideia de nada disso. Mas eu, sim.
Seu Gentil falava com o entusiasmo de quem conhecia a pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Abordava, a seu modo de homem simples do interior, conceitos da teoria da ação antidialógica do mítico educador brasileiro e até mesmo certas reflexões que remetiam à fenomenologia do espírito, de Hegel. Era uma coisa esquisita o conjunto de falas de meu avô, quando se propunha a nos ensinar a não olhar somente para os lírios do campo. Mas também atentar para o capim sudão, aquele que alimenta o gado e é usado para proteger o solo após a colheita. Ele lançava mão de uma coletânea de metáforas que precisávamos de tempo para decodificar. Mas era tudo tão preciso que não demorava muito para estarmos a discutir aquelas figuras de linguagem. Qual a relação do lírio com o capim sudão? O primeiro, lindíssimo, tem caráter estético, servindo para buquês e ornamentações. Já o segundo, insere-se em um ciclo econômico, voltando-se para o equilíbrio do ecossistema. Moral da história: “as aparências enganam”, “nem tudo é o que lhe parece”, “beleza não põe mesa”.
No último mês fiquei a refletir sobre esse emaranhado teórico de meu avô, sobretudo quando testemunhei grupos no subúrbio, da mesma origem social, confrontando-se em meio a disputas propostas por editais. Lembrei-me de imediato de “O poço”, uma produção espanhola disponível na Netflix, que traduz o egoísmo humano diante da escassez de comida. No poço, os aprisionados que se encontram nos andares de cima, ao receberem alimentos para a sobrevivência, devoram o que há, sem piedade, até que somente restos cheguem aos infortunados dos pisos inferiores. Todos vivem o mesmo drama. Mas na partilha dos alimentos, não há misericórdia. Analogamente, a pandemia, que nos vulnerabiliza e nos iguala perante à morte, também tem revelado os seus horrores. Gente garimpando osso rejeitado por supermercados, mulheres que vêm usando algodão e papel higiênico após a interrupção da distribuição gratuita de absorventes, operadoras de saúde fraudando óbitos em prol do kit covid, corrupção sistemática na compra de vacina. É tanta sujeira evidenciando a manipulação dos opressores contra os oprimidos que, esses últimos, sem crise de consciência e dor moral ou ética também têm irrompido contra iguais, crendo ser o que nunca foram. Um doutorado não muda o Brasil, mas pode arregimentar discussões que instrumentalizam quem está no andar debaixo a dialogar com os dos pavimentos superiores visando o bem comum. Colonizados sociais não carecem subir em palanque ao lado de colonizadores para fazer parte de um jogo político que enturva mudança estrutural. Que dirá se converter em um deles. A gente não precisa e tampouco deve endossar a tese de Orwell.