por Bruno Cavalcanti
Em 1986, o diretor uruguaio radicado no Brasil Omar Varella levou ao palco do Teatro Dulcina, no Centro do Rio de Janeiro, Ninguém se Lembra mais de Frederic Chopin, prestigiado texto do dramaturgo argentino Roberto Cossa em tradução de Cláudia Mariza Braga.
Na história, um drama familiar passado nos anos 40 dividido entre frustrações de um pai – um dramaturgo fracassado que pensa encontrar a imortalidade em sua obra medíocre –, uma mãe burguesa e perdida em seu tempo, uma filha que, pelo abandono do homem amado, que vai lutar na guerra, se enclausura em uma solidão e acha conforto nos braços de um jovem interesseiro em busca de uma chance de se dar bem, e outra filha, que entre mágoas e rancores estuda o francês e toma lições de piano sob a obra de Chopin.
Encabeçado por nomes como Célia Biar, excelente atriz cômica que se celebrizou pelas altas comédias encenadas no Teatro Brasileiro de Comédia, Rosita Thomaz Lopes, também egressa do TBC, Luís Carlos Arutin, então já consagrado com um Prêmio Moliére e com o título de um dos fundadores do Teatro de Arena ao lado de Augusto Boal e o televisivo Carlos Duval, além de uma ainda pouco experiente Cláudia Braga – de quem os arquivos da memória nacional pouco guardariam lembranças.
Entre esse elenco estrelado estava também o jovem Eduardo Martini (em foto de Thais Boneville), então com 26 anos de idade, egresso do teatro do Tablado e componente do musical hit carioca, A Chorus Line onde, além de ganhar projeção graças ao convite inesperado de Walter Clark para compor o elenco sem passar pelas costumeiras audições, também ganhou para a vida a amizade de uma atriz que se tornaria a grande estrela televisiva Cláudia Raia.
Em 1986, Martini já gozava de certo prestígio, e três espetáculos de relativo sucesso no currículo (Village, de 1981, ao lado de nomes como Louise Cardoso, Guilherme Karam, Fernando Eiras, entre outros, sob a direção de Wolf Maya; e Band-Age, de 1982, ao lado de Mônica Torres, Bia Sion e Liane Maya, entre outros, com músicas e direção musical de Zé Rodrix; e o supracitado A Chorus Line), mas foi na investida do uruguaio Varella que o ator passou a gozar de um prestígio maior frente a classe, nesse que seria o primeiro de uma seleção bastante curta de papéis dramáticos que desempenharia em sua carreira de mais de 40 anos.
“Minha vida, por causa dos musicais e do tempo da comédia, sempre foi indo para as peças cômicas. Nunca tinha dado um valor especial para o drama”, confessa ator, indicado ao Prêmio do Humor, premiação idealizada pelo ator e empresário Fábio Porchat para a classe artística ligada a produção de comédia. Indicado na categoria especial pelos mais de 40 anos de contribuição no cenário da comédia paulistana e nacional, Martini concorre ao troféu num ano em que inicia os trabalhos justamente num drama.
Em Nunca Fomos tão Felizes, que estreia no próximo dia 18, sexta-feira, no Teatro Itália, Eduardo dá vida ao empresário falido Billie, no texto pensado e dirigido por Dan Rosseto. “O texto é primoroso, é muito bacana, mas não é fácil”, confessa.
“Eu gosto muito de falar do ser humano, por mais louco que ele seja. O Billie é um empresário falido, metido a gostosão que quer conquistar aquela menina [papel de Larissa Ferrara] porque tem um casamento falido, mas por que ele tem um casamento falido? Uma história tem os dois lados. Ele não gosta da mulher? Gosta! Então? Ah, é porque ele gosta dela, mas a mulher o despreza, e ele vai para cima de outras pessoas porque quer ser feliz. Eu procuro humanizar a personagem para que alguém da plateia se enxergue daquela maneira”, pontua o ator que traz, ainda, outros dois dramas no currículo: a farsa Dark Room, de Mário Viana, e a doída Depois Daquela Noite, de Carlos Fernando Barros.
“Aí eu comecei a perceber que eram dois pêndulos – a comédia e o drama. Quanto mais eu faço um, melhor eu faço outro. Não que eu ache que eu seja maravilhoso, mas o drama dá uma percepção do ambiente e do cognitivo do personagem que eu comecei a usar na comédia, e o tempo da comédia comecei a posicionar no drama, porque eles têm uma contagem de tempo bastante diferente”, explica o ator que, prestes a completar 60 anos de idade, faz um rápido balanço da carreira iniciada quase que em segredo absoluto.
“Meu pai foi transferido para o Rio de Janeiro em 1975 para ser superintendente financeiro da Itaipu, e queria que eu fosse prestar algum vestibular, construir uma carreira sólida, então fui e prestei arquitetura na Universidade Gama Filho, no bairro da Piedade”, conta o ator que, antes do dia da prova, já estudando no Tablado, descobriu que havia passado no teste de Um Tango Argentino, texto de Maria Clara Machado que, entre 1977 e 1978 contou com a direção de Sura Berditchevsky.
Na montagem, Martini não só estreou escondido de seu pai, como também foi colega de uma também estreante nos palcos, a jovem Fernanda Torres. “Ninguém soube da estreia porque no dia havia uma festinha para comemorar o aniversário do meu irmão, então estreei, fui pra casa e, no dia seguinte, prestei o vestibular”, mas o ator não contava que a sorte estava do seu lado, mas pronta para dar o fora dali.
“No dia seguinte, meu pai encontrou um amigo na praia que havia assistido ao espetáculo e o parabenizou pela minha estreia”, conta enquanto se diverte com as lembranças. Muito rígido e conservador, o superintendente financeiro Milton Martini passou pelo menos três meses sem falar com o filho, o que não impediu o jovem ator de continuar numa carreira que lhe rendeu grandes encontros. Estudou dança com Nádia, Tony e Tânia Nardini – esta última, um dos nomes mais respeitados do teatro musical brasileiro; participou de teatro ao vivo na TV Tupi e gravou pontas em humorísticos da Rede Globo, entre eles Viva o Gordo, ao lado de Jô Soares.
Na comédia e na carreira de uma forma geral, o ator também teve professores muito importantes, entre eles sempre estão em destaque Hebe Camargo, Adriane Galisteu, Chico Anysio, com quem trabalhou já nos últimos anos da Escolinha do Professor Raimundo, e Dercy Gonçalves, com quem dividiu a telinha em uma dupla impagável na novela Deus nos Acuda. Com Anysio, Martini garante que aprendeu uma das lições mais importantes de sua vida: persistência.
“O Chico era impressionante! Por mais que tivesse algum problema, por mais que tivesse alguma questão, sempre estava pronto para gravar, firme, sabia o texto e ia, isso era impressionante” garante o ator que, logo após a morte do pai, subiu em cena para cumprir, em 2012, temporada do espetáculo O Filho da Mãe, no Teatro Vannucci, na Gávea (RJ).
Trabalho pelo qual o ator, inclusive, já recebeu outras indicações de prêmios. Na peça escrita por Regiana Antonini, Martini dá vida à dona Valentina, uma publicitária mãe de um adolescente que vê o filho crescer e seguir sua própria vida. Temas como a síndrome do ninho vazio são retratadas com rara delicadeza na peça que, sempre que pode, Martini repõe em cartaz. “É uma comédia muito bonita e delicada, que trata de temas tão importantes, nunca envelhece”, garante.
Um dos interpretes mais célebres de personagens femininas no teatro cômico paulistano, Martini, contudo, não vê uma facilidade na figura de um homem (tra)vestido de mulher. Pelo contrário. “Os atores dizem que têm uma peça em que vão se vestir de mulher como se fosse a receita do sucesso, não é! Quer se vestir de mulher? Vai para o Carnaval! Mas fazer uma personagem feminina é outra coisa, os trejeitos são outros, tudo é diferente, e eu sou muito chato nisso”, pontua o ator que também faz um balanço do cenário da comédia nacional.
“Eu acho que o Stand Up, por vezes, vulgarizou a comédia. Ela virou uma coisa de achincalhar a outra pessoa. Eu, particularmente não tenho identificação com isso de ‘a comédia vale tudo’. A própria Neide [Boa Sorte, personagem icônica do ator] fala absurdos sem ferir ou magoar ninguém”, pontua e segue: “Eu vi que o humor passou por uma situação muito limítrofe, mas acho que se salvou com coisas incríveis, principalmente no cinema. Os roteiros do Marcelo Saback, do Paulo Cursino, fizeram com que as pessoas perceberam coisas que o teatro não tinha tanto alcance para fazer. E os atores também! Nós começamos a pensar no que fazer que fosse bacana para mexer com as pessoas. Mas o humor passou por uma fase complicada. E começou a me incomodar que as pessoas iam pelo resultado, todo mundo queria me levar para viajar desde que fosse stand-up, e não dá pra ser assim” explica.
Se já é acostumado a receber a alcunha de “o rei da comédia”, também não seria um exagero colocar Martini no pódio de um dos atores percussores do teatro musical moderno no Brasil. Como dito anteriormente, o interprete já compôs o elenco de musicais como Band-Age, A Chorus Line e Não Fuja da Raia, importantes títulos para a pavimentação do caminho do gênero, hoje consolidado no meio. Mas, se sente vontade de retornar aos palcos em uma grande produção? Martini não anima tanto.
“Esses grandes musicais são incríveis, mas estão muito longe da nossa realidade. Eu rejeito o título ‘a Broadway é aqui’. Não é! A Broadway tem uma história social, cultural e política imensa” exemplifica o ator que ainda questiona: “Cadê os musicais brasileiros? Cadê esse povo do Nordeste, do Norte que escreve maravilhosamente bem? Em Campina Grande tem coisas incríveis, em Brasília nem se fala. Eu sou muito pela cultura nacional, ela tá muito fragilizada” diz.
Mas se tem vontade de voltar a se aventurar pelo gênero? “Sem dúvidas! Mas gostaria de fazer alguma coisa um pouco diferente, principalmente sobre a obra do Gonzagão, que é incrível! Eu gosto quando saio tocado, emocionado. Foi o caso de Forever Young [musical jukebox de Erik Gedeon com clássicos do rock internacional], saí tocado porque tinha uma verdade e uma proximidade da nossa história dos asilos, as pessoas que ficam esquecidas, as enfermeiras que passam para dar remedinho, enfim…”.
Embora esteja prestes a estrear a inédita Nunca Fomos tão Felizes, Martini também não esconde o desejo de continuar olhando pra frente. Se tem desejo de remontar antigos espetáculos que se tornaram clássicos, como O Filho da Mãe (que ganhou elogiada remontagem em 2017 ao lado de Guilherme Chelucci), Quem tem Medo de Itália Fausta, Quem Matou Maria Helena e Papo com o Diabo (comédia escrita especialmente para o ator por Bruno Cavalcanti sob a direção de Elias Andreato).
O desejo de retornar a estas produções está muito mais voltado a um autoconhecimento do ator, que diz ter progredido imensamente em temas mais íntimos depois de ganhar de presente a aplicação de um coaching sistêmico ministrado pela Coach Lisiane Zimerman. “A gente percebe que não tem receita do sucesso, você tem que fazer o trabalho. O sucesso é uma consequência, e o dinheiro é uma consequência do sucesso e da sua percepção em função das coisas que você tem que fazer. É um caminho, que eu tô amando trilhar”, garante, em paz, o ator que, indicado ao Prêmio do Humor, também vislumbra a possibilidade de dar acesso ao teatro àqueles que ainda não descobriram a arte.
“Sou a favor da formação de plateia com o teatro infantil e contra os ingressos gratuitos. As pessoas precisam saber que existe um valor naquilo que elas estão vendo, e aí sim elas têm a possibilidade de se apaixonar de verdade não apenas pelo o que está em cena, mas pelo o que está atrás do palco. Quero muito ter um espaço onde eu possa fazer capacitação para o mercado teatral. Às vezes você descobre num adolescente, num adulto, num idoso que quer ser ator, um ótimo cenógrafo, um ótimo figurinista, um ótimo técnico… essa coisa das mídias sociais ficou muito show, todo mundo quer ser tudo. É preciso dar a real: querido, você é um péssimo ator, mas um ótimo figurinista”, finaliza com habitual senso de humor que se funde a uma rara sinceridade que já fez com que muitas pessoas o entendessem mal, mas não se abala:
“Estou muito grato e feliz pelo momento que vivo agora”, sentencia Eduardo Martini que, com mais de 40 anos contribuindo para o humor paulista, já está além de qualquer dúvida: seu espaço no pódio dos grandes atores é garantido.
SERVIÇO:
Nunca Fomos tão Felizes
Data: 18 de janeiro a 17 de março (sexta a domingo)
Local: Teatro Itália – São Paulo (SP)
Endereço: Av. Ipiranga, 344 – República (subsolo do Edifício Itália)
Horário: 21h (sexta a e sábado); 18h (domingo).
Preço do ingresso: R$ 30,00 (meia) a R$ 60,00 (inteira)
I Love Neide – Manual de uma Cinquentona Atrevida
Data: 19 e 26 de janeiro e 02 e 09 de fevereiro (sábados)
Local: Teatro Itália- São Paulo (SP)
Endereço: Av. Ipiranga, 344 – República (subsolo do Edifício Itália)
Horário: 18h
Preço do ingresso: R$ 30,00 (meia) a R$ 60,00 (inteira)