por Bruno Cavalcanti
Cantora e compositora que acompanhou a evolução da história com mais rapidez e perspicácia do que o próprio país onde nasceu e construiu uma sólida carreira, Marina Lima vem travando um eloquente diálogo com o contemporâneo desde que lançou seu primeiro disco em 1979, o corajoso Simples Como Fogo.
Depois, ao longo da década de 80, assinou temas melodiosos que ajudaram a pautar as paradas de sucesso das rádios FM Brasil afora. Com a virada da década de 90, iniciou a construção de uma obra (ainda) mais introspectiva, na qual colocou sob análise sua visão do mundo, da vida e da sociedade.
Arquiteta refinada da música pop, deu à luz temas de refinada carpintaria poética e musical ao lado de compositores como Alvin L. e, principalmente, o poeta e filósofo Antônio Cícero (não por acaso, seu irmão).
Em parceria ou sozinha, compôs pérolas do quilate de Fullgás, Virgem, Charme do Mundo, Acontecimentos, O Chamado, entre outros, e como grande criadora, ajudou a reestruturar canções como Uma Noite e ½, seu eterno hit do verão, e Beija Flor, hit do grupo Timbalada que Marina tomou pra si em 1995.
Na década de 90, se afastou dos holofotes para enfrentar uma depressão e retornou com o dobro de coragem e ânsia de vida, mas com a voz prejudicada por uma intervenção médica descuidada. Após enfrentar uma década de questionamentos acerca desta questão, superou os pesares e recriou uma marca só sua.
E foi a partir de então que iniciou a reconstrução de uma linguagem mais alinhada a uma realidade social e musical que há muito tempo já não era a da musa do veraneio carioca ao qual foi alçada no final da década de 80.
Morando em São Paulo, abriu o leque de parceiros, buscando sincera reinvenção. Parte desta busca foi registrada no (subestimado) álbum Climax, de tom altamente urbano e paulista. Com a canção Não me Venha mais com o Amor, inédita parceria com Adriana Calcanhotto, iniciou diálogo com uma juventude que não se alinhava ao discurso de amor acima de tudo e a toda prova. A canção conversava no discurso, mas não necessariamente na forma, e não teve a atenção devida de um público que, sem saber, já convivia com a perfeita tradução musical de seus anseios.
Ao se unir com o duo paraense Strobo, a cantora foi mais longe e se permitiu passear por praias menos poéticas e mais diretas no single Vingativa, com versos como “seu pau não te faz invencível, te faz tentador”, hit certo nas pistas da noite gay paulistana.
A parceria do duo com a gata todo dia rendeu ainda a ótima Partiu, canção composta ao lado do ex-Cansei de Ser Sexy Adriano Cintra, e interpretada com arranjos que, embora não conversassem nem com o pop radiofônico produzido por Marina na década de 80, tampouco com a música produzida pelas e para as rádios atuais, foi boa eleita para hit das pistas, com uma letra libertária e arranjos sempre de acordo com o tom moderno e classudo da intérprete.
Mas é com Só os Coxinhas, atual single que antecede o esperado novo disco de inéditas da cantora em sete anos, Novas Famílias, que Marina conseguir solidificar de vez o diálogo com o público e (parte do) mercado contemporâneo.
Em Só os Coxinhas, a cantora assimila signos do funk carioca a seu próprio jeito. Com letra composta pelo irmão Antônio Cícero – atual imortal da Academia Brasileira de Letras -, a canção usa do funk não apenas em sua forma, mas também no cerne de seu discurso para criticar os “coxinhas”, militantes alinhados com o discurso retrógrado da direita.
A partir de então, a cantora se joga numa pista que não sobe necessariamente o morro, mas o traz para São Paulo com a mesma assinatura elegante que pauta sua obra – que se comprova mais debochada a partir deste primeiro single de versos imperativos e diminutivos, fazendo clara referência a funks como Só as Cachorras, do Bonde do Tigrão.
Com o vídeo-clip lançado na tarde de ontem, 01, com exclusividade pela revista Rolling Stone, Marina se joga no centro da cidade de São Paulo assumindo sua verve carioca, numa direção cênica que pode lembrar algum clipe clássico de Fernanda Abreu, ou mesmo, guardadas as devidas proporções, da estrela do funk pop Anitta.
No vídeo, Marina se mostra jovial, passando a imagem de que a cantora que já se levou muito a sério, hoje prefere apelar para o deboche na hora da crítica – estado de espírito muito bem traduzido por Antônio Cícero, que na letra mimetiza os signos do funk em versos como “é, desce agarradinho, mexendo o umbiguinho, você é tão safadinho, só os coxinhas, vai!”.
Se a letra e o flerte com o funk carioca fizeram arrepiar os cabelos dos puristas de plantão, fizeram também assentar a imagem de Marina Lima perante o público jovem e online que se alinha ao discurso progressista da cantora, que no alto de seus 62 anos continua apontando para o futuro e recusando qualquer possibilidade de soar ultrapassada com Só os Coxinhas, o encerramento de um ciclo construído em prol da comunicação de uma Marina Lima rejuvenescida a um público carente de ídolos.