Quando li aquele despautério do tal Conselho Nacional de Educação que, por uma cretiníssima portaria, cassava As Caçadas de Pedrinho, do grande Monteiro Lobato, além de mais uma vez constatar que um absurdo deste jaez só poderia sair de um governo cujo presidente jacta-se de não ler, saí correndo atrás da Edição do Centenário das obras infantis do mestre, que comprara para dar ao meu filho em 1982. Continuava aqui, na estante de casa, com a dedicatória que escrevi quando o menino ainda nem havia sido alfabetizado. É um livro lindo, um tijolaço de 1915 páginas, que, a bem da verdade, meu filho muito pouco folheou. Ele já é do tempo em que a Xuxa convocava seus baixinhos para aquele ilariê básico, que os Nintendos da vida davam seus primeiros e viciantes passos e manusear um tijolo seria impossível para um menino que era mais moço que Pedrinho e Lúcia, a Narizinho, meus companheiros de infância. Sítio do Picapau Amarelo ele foi conhecer na TV, bem como Bela Antonia, que teve a boneca Emília como tema da sua festa de dois aninhos.
Essa coisa do politicamente correto que importamos dos Estados Unidos soa muito falso num país mestiço como o nosso. Nos meus tempos de criança, quando descia com Narizinho para a festa no fundo do mar – inesquecível! – ou quando saía para caçar a onça com o Pedrinho, ou ainda quando viajava ao céu, na copa lá de casa as tias Nastácias cuidavam da vida doméstica, sob a rígida batuta da nossa Dona Benta. Vovó – e esta era uma das minhas frustrações – nunca foi bonachona como a avó da Narizinho. Vovó era o máximo, me deu régua e compasso, mas era seca, dura, exigente, de pouco riso. Era também péssima contadora de histórias – cumpria a função de maneira quase burocrática, louca que aquilo tudo acabasse. Bem diferente de mamãe, para quem contar história tinha a ver com representação, com onomatopéias, com as inevitáveis transposições ao mundo dos sonhos. Mamãe contava história tão bem que mana e eu perdíamos o sono, tal a riqueza de detalhes.
Nosso Sítio do Picapau Amarelo era a casa de Teresópolis, onde nas férias li muito Monteiro Lobato, a Condessa de Ségur, os volumes das enciclopédias O Mundo é da Criança e o Tesouro da Juventude. E as Tias Nastácias foram poucas – porque trabalharam décadas na família – e inesquecíveis. Negras também, como a minha amada Babá Salvina (depois virou Maria porque odiava o nome de batismo), que entrou lá em casa para cuidar da mana, então com 12 dias, e de mim, com dois anos e pouco. Casei com ela lá em casa, firme e forte. Apesar de, a essa altura, já estar trabalhando com mamãe no Hospital dos Servidores do Estado, de onde se aposentou, então já morando com as sobrinhas no subúrbio carioca. A Babá nunca foi uma figura decorativa: além de cuidar da nossa aparência ( era craque em desembaraçar meus finos cabelos numa época em que não existia condicionador e amarrá-los em rabos de cavalo indestrutíveis) ela também nos ensinou valores, rezou com a gente, e, apesar de também um tanto seca como a vovó, nos acarinhou e beijou, quando batia a carência ou quando o castigo era muito duro. Romana, a Nastácia de Teresópolis, era mulata. Também mais para seca. Sem filhos, tinha adoração pelas crianças da casa e um respeito temeroso a minha avó.
Houve também a Angelina, a cozinheira que casou lá em casa, com festa e vestido de noiva dados por mamãe, e toda a família dela e do noivo, Noel, comemorando com almoço no nosso apartamento de Copacabana. E a Stella, a costureira baiana, que trabalhava diariamente também no apartamento de Copa, fazendo nossos vestidos, pregando botões, costurando capas de sofás.
Todas essas Nastácias maravilhosas nunca foram vistas por nós como negras ou, como manda o manual do novo milênio, afro-descendentes. Eram pura e simplesmente pessoas amadas pelo que eram, pelo que representavam em nossas vidas. Minha mãe, que ficou viúva muito cedo, certamente não teria conseguido nos criar sem a vovó – e a vovó, sem o “ministério”, como ela mesma classificava seu staff.
Banir Monteiro Lobato nunca! Como também não creio que se vá ter a ousadia de mexer no texto do mestre para classificar Tia Nastácia de afro-descendente.
Cá pra nós, e falando sério, será que essa gente do governo não tem coisa melhor pra fazer, não? O Ministério da Educação que vá cuidar do Enem, a mais recente piada nacional ( caríssima, por sinal), e deixe a Tia Nastácia e toda a família de mestre Monteiro Lobato em paz. Eles com certeza dão melhor exemplo às crianças do Brasil.
Ilustração: Manoel Victor Filho