por Bruno Cavalcanti
Se você é um aficionado pelos grandes musicais montados à imagem e semelhança da Broadway ou do West End, Enquanto as Crianças Dormem talvez não lhe seja o programa mais adequado. Sim, estão lá os figurinos vistosos, grandes cenários, coreografias elaboradas e canções inéditas, ou seja, a receita de um musical pronto para fazer sua carreira rumo ao Tony Awards.
Mas não se engane, as aventuras da jovem protagonista Kelly, fã adorosa de O Mágico de Oz e do ator e cantor Fred Silveira, estão longe de inspirar os jurados a premiar esta tragicomédia musicada, ou, como seu autor, o dramaturgo, ator e diretor Dan Rosseto, gosta de chamar: um antimusical (leia a definição no fim desta matéria).
“É um antimusical porque nega os elementos básicos de um musical da Broadway por exemplo. Eu estou trabalhando com atores que têm experiências que se aproximam do musical, mas não são pessoas que trabalham com isso, que só fazem isso, e sabem de todas as audições e dão a alma para poder estar dentro, não. Estamos trabalhando com atores. Se vier alguém aqui que conheça tudo, saiba tudo, eu agradeço, mas não aceito” conta o autor – que também assina a direção.
Rosseto e o elenco de sua nova produção bateram um papo com a coluna após um dos ensaios do espetáculo que tem estreia agendada para 31 de maio, no Teatro Aliança Francesa.
Os atores arrematados para a produção (que tem assinatura do próprio Rosseto e de Fábio Câmara) refletem essa busca por uma linguagem menos homogenia. Os currículos passeiam desde o cinema argentino (Juan Tellategui) até a participação no reality show A Casa dos Artistas, do SBT (Carol Hubner, que saiu vitoriosa), passando ainda pelo teatro mais clássico (Carolina Stofella) e experimental (Diogo Pasquim).
Este elenco tão diverso será responsável por contar a história de Kelly, uma atendente de fast-food que sonha em se tornar uma atriz de musicais da Broadway e, para isso, não apenas se submete às crueldades de seu ambiente de trabalho, como se envolve em um esquema de tráfico de drogas em busca de seu sonho impossível.
“Ela não é uma princesa. Ela é uma fodida, ela vive num mundo real. Não é o mundo que vamos buscar vendo um musical da Broadway. As personagens são contraditórias, eles tomam atitudes que um ser humano comum, normal e com alguma moral não tomaria. E ao mesmo tempo ela não é uma personagem digna de pena porque ela se permite às coisas que acontecem”, esclarece Rosseto. Hubner discorda:
“O que mais me interessou quando o Dan veio me contar a história foi a questão do não julgamento. O que você tem que fazer é tentar compreender e não julgar essa personagem, porque é um ser humano que tem essa vida. É simples, é um fato, o que você vai fazer quando a pessoa tem a vida que ela tem? É a realidade dela”, diz.
“O Dan bateu numa tecla desde o início: quando você achar que uma personagem vai tomar uma atitude, ela toma outra. Quando você acha que a personagem vai por um caminho, ela vai para outro e isso ajuda a desconstruir o que você achava e ir ao que a personagem precisa. O que você acha não interessa”, explica Diogo Pasquim.
Contudo, a despeito das histórias tristes, trágicas, cômicas e imunes (ou não) de julgamentos, Enquanto as Crianças Dormem vem à luz para tratar de outro assunto que está intimamente ligado à natureza humana: o fanatismo. A pretensão é colocar uma lupa na relação que se criou entre um público que deseja arduamente deixar para trás a profissão “plateia” e brilhar em cima de um palco na profissão de “star”.
“Fiz vários cursos de teatro musical e vi muita gente jovem que sabe de cor os anos que esses musicais foram apresentados, as turnês que eles fizeram, o nome de todas essas cantoras, quem cantava melhor, quem era soprano, quem era mezzo, era uma loucura. Essas meninas e esses meninos estão aí, eu convivi e ainda convivo com essas pessoas”, conta Hubner.
Rosseto avaliza: “Eles estão acostumados a pagar caro num curso, apresentar num puta teatro e, quando eles levam o primeiro não da vida, deprimem. Então eu faço o que? Eu desço essa personagem num lugar que ela não tenha perspectiva. Talvez isso incomode essas pessoas, e eu quero que incomode para que elas pensem: o que é ser artista?”.
Este tipo de público tem uma relação tão forte com as produções que uma garota chegou a descobrir o endereço de Fred Silveira (decano dos musicais brasileiros e que também assina as canções desta montagem) para tentar passar a noite de Natal ao seu lado. Se hay Rivotril, soy contra.
Mas não pensem que essa visão crítica da protagonista e do diretor denuncia uma aversão pelo gênero. Muito pelo contrário. Hubner, por exemplo, já deu vida à personagem-título do musical infantil A Pequena Sereia sob a direção de Alexandre Biondi, enquanto Rosseto vem passeando pelo gênero há quase dez anos com espetáculos como O Primo Basílio – O Musical, Lisbela e o Prisioneiro – O Musical e, mais recentemente, Hoje é Dia de Maria.
“Eu gosto de musical, tendo um respeito pelo gênero como uma pessoa que gosta de arte, nem mais nem menos. Estamos fazendo um teatro diferente, que é uma reinvenção do gênero, escancarado um pouco o que se faz”, conta o diretor, que não nega, entretanto, o fato deste também ser um projeto de entretenimento, ainda que passeando pela seara da tragicomédia – na qual, diga-se, o autor é mestre.
Há uma miscelânea de influências neste espetáculo que, como um bom musical, também não poderia deixar de enfrentar alguns percalços. Um deles foi a saída repentina de Beto Marden, que viveria o pseudomocinho Tom, que agora está sob os cuidados do ator Haroldo Miklos. O ator teve problemas de cunho pessoal que o afastaram da produção, mas vida que segue.
Enquanto as Crianças Dormem tem estreia agendada para 31 de maio, no Teatro Aliança Francesa, zona central da cidade, as quartas e quintas às 20h30. Os ingressos custam R$ 50,00 e serão 18 apresentações no total.
A produção conta ainda com uma campanha de crowdfunding no site Benfeitoria (clique aqui) que visa arrecadar R$ 20 mil até sexta-feira, 05 de maio. Até o momento, a campanha – que é na política “ou tudo ou nada” – já arrecadou 97% de seu valor (R$ 19.430,00).
Os valores para apoio variam de R$ 30,00 a R$ 5 mil e oferecem recompensas que vão desde ingressos para a peça até camisas autografadas por times de futebol e um bate-bola com o tenista Fernando Meligeni.
Leia abaixo as regras pensadas por Rosseto para definir seu antimusical, ou, como esta santa coluna gosta de chamar:
Os Dez Mandamentos de um Antimusical
1 – Oposição ao gênero; contraditório, cruel, trágico, farsesco.
2 – Crítica irônica aos modelos vigentes de musicais estrangeiros.
3 – A base da narrativa é o texto e não as composições musicais.
4 – Nas cenas onde há coreografias, a dança não é o elemento principal.
5 – As músicas são divididas entre: composições com letras originais e músicas conhecidas.
6 – Não sobrepor a teatralidade do espetáculo com recursos e aparatos técnicos como: amplificação da voz cantada (uso de microfone).
7 – Quando há microfonação a sua utilização é para recursos que não o canto.
8 – Equipe reduzida (staff e elenco).
9 – Reutilização de figurinos originais utilizados em musicais tradicionais.
10 – Atores com nenhuma ou pouca experiência em musicais.