por Vagner Fernandes
A cultura do cancelamento tem revelado extremos. E muitas contradições. Para começar, a execração pública ou em grupos privados de quem se diverge não poderia sequer ser categorizada como cultura. É maldade mesmo. E nada tem a ver com os princípios que regem a liberdade de expressão em uma democracia. Esse é o discurso dos que, desprovidos de bons argumentos e incapazes de promover um debate amistoso, pautado pela pluralidade, partem para a baixaria, naturalizando a hostilização de discordantes como se fosse um ato banal do cotidiano.
Oriundo do subúrbio, desde sempre fui cancelado pelos afortunados de outras regiões nobres da cidade. E também por parte de meus pares, no território ou na militância. É como se pecado fosse ter estudado em bons colégios, falar inglês e ter carro desde os 20 anos. Do lado de lá eu representava uma ameaça ao establishment. Do lado de cá, eu fugia às origens. Mas poucos buscavam compreender como eu conseguia derrubar obstáculos. Não há mistério. Nunca houve. Estudei muito e trabalhei igualmente. Os colégios foram públicos, no curso de línguas eu era bolsista, o carro comprei em 24 parcelas com uma pequena entrada.
O histórico, no entanto, não me livrou de, na semana passada, por exemplo, ter sido hostilizado por um colega da militância que, ao me encontrar no estacionamento de um shopping, disparou que “eu não era um suburbano raiz”. De fato, nunca fiz proselitismo da pobreza. Nunca andei de sandálias de dedo sujas, com roupa amassada, cabelos desgrenhados e unhas imensas para marcar posição como militante da periferia. Há quem, por dificuldades financeiras reais, viva um cotidiano de cão. São maioria. É fundamental ampará-los. Mas há também quem queira converter a pobreza numa bandeira e em símbolo estético. Isso é loucura. Eu não conheço um jovem de periferia que ache bacana viver em dificuldades e não anseie por uma vida melhor.
A militância equivocada vem tratando, no entanto, de cancelar tudo e todos que contrariem as suas premissas. É aquela que crê na pregação da miséria eterna e do não uso da concordância verbal; é a que acredita no cancelamento do preto que, ao reunir as suas economias por décadas, comprou uma casa fora da favela; é a que defenestra o macumbeiro que preserva a sua intimidade na fé; é a que “chocha” o LGBT que não gosta de Madonna ou Lady Gaga. Tem de ser militante raiz. Caso contrário, há o risco de cassarem até a carteira de convicção dos antagonistas. Contradiz-se quem busca cancelar o igual, colocando-o na coxia a fim de brilhar no proscênio. Luzes se apagam. Pode ser no fim do espetáculo, mas também no meio, após a cena interrompida por causa de um blecaute.