por Bruno Cavalcanti
A denúncia de estupro envolvendo o jogador Neymar traz a tona um histórico de craques absolvidos ou condenados pela sociedade graças ao que fizeram dentro de campo. O peso dado ao futebol no Brasil distorce regras morais que aprendemos nos berços. Por aqui, nas arquibancadas ou nas mesas dos botecos, a importância de cada ato varia conforme o seu autor. Um gol vale mais ou menos do que um crime e a sentença é acentuada ou atenuada conforme o desempenho dentro das quatro linhas. O mundo paralelo dos chutes e dos dribles sempre ignorou a vida real.
Há 69 anos o Brasil viveu sua primeira tragédia futebolística no último jogo Copa do Mundo de 1950. Muito antes do sete a um imposto pela Alemanha em solo mineiro, que virou motivo de piada entre o nosso próprio povo, coube ao Uruguai vestir a carapuça de carrasco e ceifar o sonho tupiniquim após vencer o selecionado brasileiro por 2 a 1, conquistando o mundo em pleno Maracanã. 199.854 torcedores assistiram in loco o gol de Alcides Ghiggia, que contou a falha do goleiro Barbosa. O tento anotado aos 34 minutos do segundo tempo decretou o título uruguaio e sentenciou Barbosa, que não teve a oportunidade de disputar outro Mundial, à pena perpétua:
“No Brasil, a pena máxima é de 30 anos, mas pago há 40 por um crime que não cometi”. A frase dita inúmeras vezes pelo ex goleiro retratou as humilhações sofridas por quem não teve o direito de errar. Considerado um dos maiores arqueiros da história do Vasco da Gama, Barbosa foi impedido de visitar a concentração da Seleção Brasileira em 1993 pois sua presença poderia “transmitir imagem negativa”, segundo membros da Confederação Brasileira de Futebol na ocasião. Negro e pobre, Barbosa morreu em 7 de abril de 2000, aos 79 anos.
O Brasil precisou de oito anos para se recuperar da derrota em 1950. Somente na Copa do Mundo de 1958, realizada na Suécia, alcançamos o Olimpo do futebol mundial. Pelé e Garrincha conduziram a Seleção a mais um título mundial em 1962, no Chile. Pelé ainda alcançaria a glória em 1970, no tricampeonato conquistado no México. Ambos são considerados símbolos da brasilidade pois, com seus pés, deram a alcunha de “país do futebol” ao Brasil. Para a dupla jamais foi dada sentença moral por suas condutas extra campo.
Pelé, ao conquistar a Copa do Mundo de 1970, não viu problemas em ser garoto propaganda de Emílio Garrastazu Médici, ditador que usou a conquista no México para vender a ideia de que o Brasil avançava o progresso enquanto sangue jorrava com a mesma frequência dos gols. Garrincha, eternizado como “Estrela Solitária” no filme dirigido por Milton Alencar, passou ileso pelas agressões domésticas que cometeu durante sua vida, encerrada em 1983. Seu apreço pela boemia romantizou uma personagem cuja a vida regada de porres intermináveis e traições incontáveis foi contada com saudosismo.
Enquanto Pelé, Garrincha e Neymar seguem retratados como Macunaíma, coube a Barbosa ser lembrado como Severino, o cangaceiro que matava por prazer em O Auto da Compadecida. A piedade após a morte ao vilão criado por Ariano Suassuna contrasta com o heroísmo de quem jamais foi herói. Pelé, Garrincha e Neymar são as faces do que somos. Um trio de astros que vendem um país vitorioso enquanto se alimentam ideais contraditórios. Ainda bem que os espelhos quebram.
Pedro Cavalcanti é jornalista esportivo, formado pelo Centro Universitário FIAM FAAM. Participou da cobertura da Copa das Confederações em 2013, no Brasil, e produziu podcasts sobre as Copas do Mundo de 2014 e 2018.
O artigo “A Dinastia dos Espelhos Quebrados” foi escrito especialmente a convite da coluna Conexão Sampa.