por Anna Ramalho
“A vida só se dá pra quem se deu” ( Vinicius de Moraes)
O grande encontro da minha vida – aquele lance de alguém que nos escolhe quando ainda nada existe, estamos no limbo, na grande nuvem – é a minha irmã, Bel, que amanhã, dia 3, comemora 70 anos.
Sempre adorei o mês de setembro e hoje pensava com os meus botões que, quando eu era muito pequena, não tinha como correlacionar o mês com o nascimento da mana, mas ela foi certamente a primeira grande alegria de setembro. Nem me lembro se tive outras ao longo da vida ( aliás, minto: fiquei oficialmente noiva do pai do meu filho em setembro), mas a chegada da Bel vale por um milhão de felizes acontecimentos.

Com vovó e mamãe, na casa de nossos primos em Itaipava: Bel e eu aí por volta de 1955
Sou exatamente 2 anos e 9 meses mais velha do que ela. Lá no início fez muita diferença, claro. Eu amava e odiava com igual intensidade aquele bebê lindo, de parar gente na rua, muito loura, olhos muito verdes, rechonchuda, fofa, que chegou para roubar minha condição de rainha absoluta da casa e dos corações. Nossa babá (amada Salvina, de colo inesquecível e broncas tonitruantes, quanta saudade de você) apartou brigas e puxadas de cabelo muitas vezes. Tadinha da mana! Eu não era mole, não.
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A adolescência também teve seus momentos tensos: naquela altura em que eu tinha 13 e ela, 10 pra 11, a bichinha sofreu muito. Houve uma ocasião em que, nas férias de Teresópolis, empolgada com a turma de amigos novos, fui com Regina Martelli – minha companheira pra tudo – e o resto do pessoal para a piscina do Parque Nacional. Era um piquenique ou coisa assim, a Bel cismou de ir e levar a Glorinha sua amiguinha de fé. Na hora de ir embora, fomos – e largamos as duas pequenas pra trás, na boa, simplesmente não prestamos atenção. Foi um charivari quando cheguei em casa: vovó, com toda a razão, queria me matar. Quando já pensava até em chamar a polícia, as duas pequenas chegaram. Andaram a pé um grande pedaço e, claro, trataram de chorar enquanto chegavam para aumentar a minha culpa e a pena do castigo que recebi.
De outra feita, ela se perdeu da gente na procissão do Senhor Morto da Semana Santa. Outro barulho tremendo, mais momentos de pânico. Acabou sendo encontrada por um amigo da família que passava de carro e a reconheceu.
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O correr dos anos tratou de botar tudo no lugar e viramos as melhores amigas e companheiras. Dividimos o mesmo quarto na Rua Dias da Rocha e em Terê, íamos na mesma condução para o mesmo colégio Santa Úrsula, mas ainda tínhamos turmas e festinhas diferentes. Por um certo tempo. Mais tarde, a diferença diminuiu, e – ainda que cada uma tivesse a sua BFF – topávamos fazer programas uma com o grupo da outra.

Um dos momentos, digamos, Cynara & Cibele, na adolescência. Era uma cantoria só
Bel e eu sempre gostamos muito de cantar. Houve um tempo – felizmente breve, pois delirante – em que cantávamos em dueto tentando emular a afinação incomparável de Cynara & Cybele, as sabiás da MPB.
A Bel sempre adorou assuntos esotéricos e houve uma época em que se metia a botar tarô. Recém-viúva, eu ouvia dela, diante do baralho cigano: “Vai aparecer um homem na sua vida. Mas parece aqui ser um jovem imaturo.” Morria de rir e até hoje, quando lembro dessa época, rio sozinha. Ou com meu irmão de vida Chicô Gouvêa, outra vítima do baralho cigano da mana esotérica.
Nesse fiar de memórias, não pode faltar o dia em que fomos dar com os costados na Rua Jaceguai, 27, na Tijuca, porque o melhor da MPB se reunia na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carrero, pai da Angela, então mulher do Gonzaguinha. Ali era sempre um open-house às sextas-feiras e – mesmo sem ter sido convidadas – convocamos as amigas Rosa Freire d’Aguiar e Heloisa Marcondes, a dona do Fusca que nos conduziu, para o programa. Fico imaginando se hoje eu teria cara de fazer coisa igual. Pensando retrospecto, um mico dos bons. Ninguém nos conhecia e também ninguém nos deu a menor bola…
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Outono virando inverno e as manas na Copley Square, em Boston, só dando pinta. Foto do super colunista Guilherme Amado, que viajava conosco e ainda estava terminando a faculdade
Juntas fizemos memoráveis viagens. Nossos casamentos, separações, perdas, filhos, netos, nada nunca impediu que deixássemos de viajar juntas para tudo que é lado. Viramos Portugal de ponta-cabeça nos anos 80 com Fernando, meu saudoso companheiro; nos esbaldamos em Gramado, Canela, Salvador, Buenos Aires, Paris e Nova York e muito mais; curtimos as delícias do Nordeste brasileiro e cruzamos o Amazonas em navio poderoso rumo a Miami. Antes da pandemia, a nossa por enquanto derradeira: a viagem inesquecível à Turquia, com direito a voo de balão sobre a Capadócia. Não pode haver melhor companheira de viagem e rezo pra chegar a hora de podermos voltar a explorar o mundo. Sem máscaras para podermos rir ainda mais e com vontade.

Cabeça devidamente coberta na mesquita de Yesil, Turquia, na nossa última viagem pré-pandemia. Que Allah nos proteja e nos leve para muitas viagens ainda.
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Feliz aniversário, Mana! Que os seus 70 sejam como você é : leve, solta, livre e radiante. A rainha do bom humor.
Te amo. Você foi um grande presente que a vida me deu.
Para lembrarmos da nossa aventura dos velhos tempos, um Gonzaguinha que sei que você ama.