por Anna Ramalho
Parte da minha infância foi assombrada por um crime covarde: o assassinato da jovem Aída Curi, 18 anos, estuprada e atirada da cobertura do Edifício Rio Nobre, no Posto 5 da Avenida Atlântica. Foram seus algozes os playboys Ronaldo Castro, Cassio Murilo e o porteiro do prédio, Antonio Sousa.

A Avenida Atlântica no tempo em que assassinaram Aida Curi: é melhor essa imagem do que ver a moça jogada na calçada, a imagem que sempre me assombrou
Hoje o que me assombra – para lá dos números alarmantes de feminicídios e crimes contra a mulher – foi testemunhar, com cenas que achava só poder assistir na ficção, a agonia e morte da advogada Tatiane Spitzner, aquela moça tão bonita de Guarapava (PR), vítima daquele ser desclassificado, aquele monstro chamado Luiz Felipe Manvalier.

A beleza e o frescor de Tatiane Spitzner: a imagem que devemos guardar da moça que foi assassinada pelo marido brucutu
60 anos separam as duas brutalidades.
Aída Curi morreu no dia 14 de julho de 1958, por volta das 21 h, num tempo em que mesmo notícias com este impacto levavam 24 horas para se tornarem públicas. Digo que foi um crime que me assombrou porque o jornalista David Nasser, através das páginas da revista O Cruzeiro, moveu uma campanha incessante na tentativa de pressionar a condenação dos culpados. O Cruzeiro, líder de vendas em sua época, era semanal – e a cada semana, escondida da vovó, eu pegava a revista para ler e invariavelmente ficava apavorada, com medo mesmo, ao ver a foto da moça estatelada na calçada ocupando página dupla. Era sensacionalismo puro e O Cruzeiro vendia edições e mais edições. Naquela época, as pessoas diziam que a silhueta do corpo da moça ficara “impressa” na calçada em frente ao prédio, o que foi suficiente para eu nunca mais passar por ali, caminho obrigatório para minhas aulas na Cultura Inglesa, no Posto 6.
Seis décadas passadas, imagino que a Globo tenha aumentado sua audiência barbaramente divulgando as estarrecedoras imagens desse crime brutal no Paraná, que, entre outras coisas, assinala o tamanho do pulo no modo como as notícias chegam aos consumidores hoje em dia. Foram cenas chocantes, mas que tinham de ser divulgadas.
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No tempo em que eu vivia assombrada pelo fantasma da pobre Aída Curi, houve o diabo no julgamento dos assassinos. Cássio Murilo – na época com 17 anos e já um mau elemento, garoto insubordinado no colégio e desrespeitoso com as garotas – era menor de idade e, ao fim e ao cabo, foi encaminhado ao Serviço de Assistência ao Menor ( SAM), onde passou um ano e saiu direto para o serviço militar. Filhinho de papai e de mamãe – anos depois sua mãe ficou famosa em programas de TV como uma entidade da umbanda, Seu Sete da Lira – voltou a aprontar e hoje ninguém sabe por onde anda.
O porteiro Antonio de Sousa, que participou da curra ( termo muito em voga nessa época da “juventude transviada), sumiu, ninguém sabe, ninguém nunca mais viu.
Ronaldo de Castro, condenado a 35 anos no primeiro julgamento, acabou – no terceiro deles – com a ridícula pena de 8 anos de detenção. Seu pai, Edgard Castro, um rico empresário capixaba, tratou de subornar testemunhas, jurados, o escambau, pra tirar do meliante a pena máxima que ele merecia. Cafajeste debochado, o assassino ainda lançou moda durante o julgamento: os óculos escuros, rapidamente rebatizados de óculos Ronaldo.
O juiz do caso hoje é nome de penitenciária: Talavera Bruce.
O caso Aida Curi é a cara do Brasil. De ontem e de hoje.
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No assassinato de Tatiana Spitzner, as cenas chocantes e brutais que todos vimos na televisão são claríssimas e, se essa tecnologia toda existisse no tempo de Aída Curi, os criminosos não escapariam da punição.
Mas, como sou brasileira e sei que aqui tudo é possível, tudo mesmo, tenho medo. Quem tem na Suprema Corte do país um Gilmar Mendes não dorme sossegada.
Eu não durmo. Não consigo relaxar. Sigo assombrada como a criança de 9 anos que era quando Aida Curi foi espancada, estuprada, assassinada e jogada na calçada do Edifício Rio Nobre.